Não conheço o jornalista Daniel Scola, da RBS, mas deve ser um profissional importante na empresa, pois ouço com muita frequência intervenções suas, sobretudo em transmissões de rádio. No caderno DOC de Zero Hora referente a 23, 24 e 25 de dezembro de 2017 (p. 22), publicou uma entrevista com Tânia Terezinha da Silva, prefeita de Dois Irmãos. Eleita pela primeira vez em 2012, reelegeu-se em 2016. Por ocasião de sua primeira eleição, uma colega de Scola, no caderno Donna, do mesmo jornal, escreveu as asneiras que relato nas notas “A prefeita negra da Baumschneis” e “Atenção, hiper-racistas sedizentes antirracistas, a negra da Baumschneis fica”: “Surgiu da campanha eleitoral a definição que abriga, na mesma frase, a forasteira negra e a cidade de colonização alemã, a popularidade de uma dobrando a desconfiança de outra, a acolhida não deixa de evidenciar a maior diferença entre ambas”. Na época, fiz uma pesquisa na internet que indicou (mesmo que, obviamente, não com 100% de garantia de correção) que ela foi uma das apenas três mulheres negras eleitas prefeitas em todo o Brasil (as outras duas foram eleitas em PE e BA).
Mesmo que as perguntas de Scola não cheguem ao nível de insensatez das afirmações de sua colega no caderno Donna, a sensação de que ele também considera a população do município, no mínimo, suspeita de ser problemática com a condição de mulher negra da prefeita transparece na primeira pergunta: “Como é ser prefeita no berço da colonização germânica?”. Em qual escola antropológica o jornalista buscou inspiração para “cair na bobeira” de imaginar que ser prefeita negra no “berço da colonização alemã” poderia significar algo de sui generis, de especial? Se a estranheza deriva do fato de ser mulher, o jornalista demonstra uma enorme lacuna em seus conhecimentos, pois, como mostro na nota “As prefeitas gaúchas”, aparentemente, a primeira vez em que uma mulher assumiu uma prefeitura, por mais tempo, no RS, aconteceu em São Leopoldo (município ao qual Dois Irmãos pertenceu, até então), em 1959 (mesmo que não eleita para o cargo), e entre as eleitas para o cargo, desde 1982, predominam os sobrenomes “estrangeiros”. Se, pelo contrário, a estranheza deriva do fato de Tânia Terezinha da Silva ser negra, o jornalista mostra ser adepto do mais rasteiro e abominável senso comum de que os “alemães” são geneticamente super racistas (no mínimo, muito, muito mais racistas que o restante da população gaúcha) – situação que não se esperaria de um jornalista de destaque de uma empresa da suposta ou efetiva qualidade da RBS, e se esperaria uma mente um pouco mais aberta, mais arejada!
Tenho contado para algumas pessoas um episódio que ilustra a “porcaria” de município/população que Tânia Terezinha da Silva administra desde 1/1/2013. Certo domingo, no primeiro semestre de 2017, minha mulher e eu fomos almoçar em Dois Irmãos. Chegamos ao restaurante do Schützen-Verein, e havia fila; fomos ao restaurante do Sankt-Cäcilien-Verein, e havia fila; fomos a um restaurante que fica atrás da igreja católica (o adjetivo “católica” é importante, pois o povo de lá é muito ecumênico, existem mais duas grandes igrejas luteranas, diferentes entre si, além de várias outras), e havia fila; fomos a um restaurante mais caro, mais refinado, num pequeno shopping center, e havia fila. Acabamos voltando ao restaurante do Sankt-Cäcilien-Verein.
Falando em igrejas, com certeza, Daniel Scola não tem a mínima ideia de que atuou, por muitos anos, em uma das comunidades luteranas de Dois Irmãos, o pastor alemão Heinz Dressel (falecido em agosto de 2017). Depois de sua volta à Alemanha, dirigiu por lá uma organização que, durante os regimes militares do Cone Sul, ajudou muitos perseguidos políticos argentinos, brasileiros e chilenos. Se nossa imprensa da Capital não fosse tão mesquinha quanto é, e seus jornalistas dessem ao menos uma olhada no Google, veriam que Dressel foi homenageado, posteriormente, pelos governos de Argentina, Brasil e Chile. Por tudo isso, o povo de Dois Irmãos enxerga muito mais longe que grande parte da imprensa super bitolada da Capital.
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Como Tânia Terezinha da Silva se mostra, mais uma vez, grande mulher negra, tomo a liberdade de transcrever sua entrevista. Para quem quer tomar conhecimento de um pensamento autenticamente moderno, leia a entrevista - o centro é o universal, no caso, o gênero humano; ser homem ou mulher, branco ou negro, falar determinado idioma, são acidentes. Tânia possui apenas o segundo grau completo; Daniel Scola é mestre pela Cardiff University (GBR), mas, aparentemente, a prefeita enxerga muito mais longe que ele. Que vexame!
Daniel Scola: Como é ser prefeita no berço da colonização alemã?
Tânia Terezinha da Silva: Não sou adepta da vitimização. Quando tu chegas num novo local de trabalho, em outra cidade, tens de ter resiliência. Deves te adaptar ao meio – não é o meio que se adapta a ti. Isso é muito presente na minha vida. Cheguei nesta cidade e fui me adaptando a ela. Quando os eleitores votaram em mim, eles não votaram na cor da minha pele ou por ser mulher. E isso eu discuto em todas as esferas. Acho que um candidato, quando se lança a qualquer cargo, não pode ser basear na cor ou no gênero, e sim naquilo que pode contribuir para a comunidade, nos projetos que tem. Nós precisamos saber, sim, o que aconteceu no passado com os negros. E sempre lembrar isso. Mas não suporto excessos em torno de algumas causas.
DS: A senhora pode dar um exemplo disso?
TTS: Posso te dizer que nunca sofri preconceito aqui. Sou negra numa cidade na qual se fala alemão, mas posso te dizer que sempre me senti totalmente à vontade. Pode acontecer de tu estares num supermercado e alguém furar a fila, ou numa loja e aí atenderem outra pessoa antes de ti. Mas isso acontece porque tu és negra? Acho que não. Tenho uma visão muito positiva de tudo. Nasci para ser feliz e, mesmo na política, não quero deixar inimigos. Podemos ter ideias diferentes e divergências, mas não inimigos. Então, essa coisa de se sentir vítima eu não suporto. Isso não faz parte da minha vida.
DS: A senhora nunca realçou o fato de ser mulher negra nas campanhas?
TTS: Nunca. Jamais foi tema de discussão de campanha. Existe uma raça que é a raça humana. Quando fui eleita, não sabia que era a primeira vez que era uma negra que assumia uma prefeitura gaúcha. Vejo que, aqui, perpassa a questão da cor da pele. Mas não posso falar em preconceito. Às vezes perguntam como eu consegui me eleger. Não esperei a sorte chegar. Sempre trabalhei.
DS: Como se rompem as resistências no ambiente político, no qual os homens são maioria?
TTS: Trabalhando. É a única resposta possível. Sempre digo para os meus filhos: quando tu chegas num lugar, chegas cravando. Ou seja, mostrando trabalho, disposição, vontade de aprender, disponibilidade. Tenho uma trajetória de trabalho e muito esforço. Essa é a fórmula.
DS: Como isso se reflete na prática?
TTS: A prefeitura fecha as contas do ano em dia. A cidade está organizada. Conseguimos aprovar a atualização da planta do IPTU, que não era alterada há 20 anos. Teve polêmica, claro. Ainda temos o desafio de dar creche para todas as crianças. Tudo será feito com trabalho duro.
DS: Por que os partidos têm dificuldades em preencher vagas de candidatas mulheres?
TTS: Acontece muito de os partidos colocarem mulheres que não entendem nada de política só para preencher a reserva de 30%. Uma coisa que dificulta a participação das mulheres é a carga doméstica. Meu exemplo: não consigo trabalhar enquanto não souber onde estão os meus filhos, se estão na aula, no trabalho. São coisas inerentes à mãe, à mulher. Não tem como desvincular a mãe da política, independentemente de o homem ajudar ou não. Se meus filhos me ligam agora, interrompo o que estiver fazendo para atendê-los. Outra coisa: somos julgadas pelas próprias mulheres. Um homem não nota se tu usas a mesma roupa dois ou três dias. A mulher, sim. Aí está um problema.
DS: As propagandas partidárias têm ressaltado como nunca as mulheres.
TTS: O partido e a candidata que disserem “vote em mim porque sou mulher” estão querendo excluir os homens. Se quero atingir o eleitorado em geral, como é que eu vou falar só para um grupo?
DS: Morando há mais de 20 anos em Dois Irmãos, a senhora adquiriu algum hábito dos descendentes de alemães?
TTS: Sou muito simples. Mas tem várias coisas que assimilei bem. Gosto de festas tipo kerb, de comida alemã e, é claro, chope. Meus parentes dizem que até um pouco de sotaque eu adquiri. Aprendi pouco mesmo, apenas algumas frases em alemão para poder saudar os moradores.
(Fonte: Caderno DOC, Zero Hora, 23, 24, 25/12/2107, p. 22). [25/12/2017]