Em 10 de março de 2021, ocorreu um protesto contra o fechamento de atividades econômicas por causa da pandemia do coronavírus, em frente ao Palácio Piratini, em Porto Alegre. Na oportunidade, uma das organizadoras do evento, Doris Denise Neumann, divulgou um vídeo no qual cometeu o lamentabilíssimo equívoco de citar a frase “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta), que costumava estar sobre os portões dos campos de concentração nazistas.
O vídeo deu origem a uma enxurrada de reações, incluindo, conforme notícias de imprensa, um “procedimento policial (...) com base no artigo 20 da lei 7.716, segundo a delegada Andrea Mattos, responsável pela investigação”. Tenho destacado que não sou jurista, mas, mesmo na qualidade de leigo, estou convicto de que nenhum juiz apartidário – como devem ser os juízes, de acordo com decisão recente do STF – acolherá a tentativa de enquadrar o ato de Neumann no citado artigo legal. As consequências do infeliz episódio ficarão limitadas ao jogo de cena patrocinado por autoridades – de concreto, talvez venha a ter algum efeito pedagógico.
Por não ter visto comentários a respeito, cabia-me lembrar um outro lado desta moeda – a frase polêmica foi pronunciada em alemão, por uma pessoa de sobrenome Neumann, residente em Nova Petrópolis, cidade que cultiva uma identidade “alemã”. Há figuras carimbadíssimas entre nossa(o)s formadora(e)s de opinião que ao ouvirem a palavra “alemão” (em português mesmo!) entram em alerta máximo, como se fossem guardiãs da maleta com os códigos dos arsenais atômicos. E quando alguém efetivamente pronuncia um “Ja” ou um “Nein”, em alemão, sobem, literalmente, em paredes. E foi gente deste quilate que encheu órgãos de imprensa com a qualificação da autora da frase como “ex-candidata a prefeita na cidade de Nova Petrópolis” – palavras repetidas ad nauseam, em meios de comunicação, como qualquer navegador da internet pode constatar.
Cá entre nós, se a manifestação de Neumann pode ser enquadrada no artigo 20 da lei 7.716, por que a insistência de que a suposta ou efetiva malfeitora é, por assim dizer, uma repugnante representante da “germânica” cidade e população de Nova Petrópolis não pode ser enquadrada no mesmo artigo – "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de (...) procedência nacional"? Imaginei que, numa louvável iniciativa pedagógica, civilizadora a delegada poderia ter convocado – com a devida publicidade, como aconteceu em relação a Doris Neumann – jornalistas e responsáveis por instituições que estiveram na linha de frente da divulgação do qualificativo, para perguntar por que o fizeram? Teria sido uma demonstração de equidade, e, talvez, numa próxima oportunidade, pensassem duas vezes antes de propagar uma afirmação igualmente infeliz.
Se alguém disser que estas pessoas não devem ter feito a afirmação de forma mal intencionada, pode-se responder que não será fácil apresentar provas de que Doris Neumann tivesse a intenção de banalizar os campos de concentração, ao fazer sua afirmação.
Para manifestar esta minha opinião sobre o caso, publiquei, neste site, no dia 13/3/2021, a nota “Arbeit macht frei”. Sabendo que os leitores de meu site são poucos, havia motivos óbvios para pressupor que a delegada Andrea Mattos, titular da Delegacia de Combate à Intolerância, não tomaria conhecimento de minha publicação. Por este motivo, tentei localizar seu e-mail, para enviar-lhe o link com meu texto. Como não o tivesse localizado, entrei no site da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, onde encontrei uma instância e uma pessoa responsável, entre outras coisas, para manter contato com o “público em geral”, à qual enviei o e-mail destinado à delegada, com o pedido de repassá-lo a ela. Guardo, em meus arquivos, e-mail postado às 11h48min do dia 15/3/2021 informando que minha mensagem havia sido repassada à delegada.
Meu e-mail dizia o seguinte:
Senhora Delegada Andrea Mattos, uma das frustrações de minha vida é não ter estudado Direito. Traduzi um clássico do Direito que é citado em acórdãos do STF (Fundamentos da Sociologia do Direito de Eugen Ehrlich), mas a ideia de fazer o curso sempre foi adiada, e acabou não ocorrendo. Lembro, porém, de uma conversa com um desembargador, hoje aposentado, que me disse que “Direito é bom senso codificado”. Nesta linha, sempre parti do pressuposto de que nossa ordem jurídica segue princípios da tradição iluminista-ocidental, significando, entre outras coisas, o caráter UNIVERSAL das leis, ou seja aplica-se a todas as pessoas e a todos os casos iguais ou simétricos.
Mas tenho a clara sensação de que, na prática, isto não acontece, neste país. Em 2010, um procurador da República em Lajeado iniciou uma “desneonazificação” de todo o vale do rio Taquari, porque viu, num noticioso de televisão, que um doido ou um provocador havia desenhado umas suásticas ao longo de uma rodovia. Como, na sua opinião, populações originárias de “colonização germânica” possuem uma “tendência” ao neonazismo, começou uma “desneonazificação”, que manteve por dois anos. Batalhei durante 4 (!) anos junto ao MPF-RS para obter uma resposta à pergunta por que em relação a outros grupos o MPF-RS entra em ação poucas horas depois de qualquer denúncia ou indício, enquanto no caso de agressões aos “alemães” ele não só não faz nada, mas integrantes seus até humilham este grupo com um processo de “desneonazificação”. Cheguei a acionar a corregedoria do MPF em Brasília, mas até hoje não tenho resposta.
Tendo em vista o rumoroso caso da semana passada da declaração de Doris Denise Neumann no contexto do protesto contra as medidas de restrição à atividade econômica, o noticiário da imprensa sugere que estamos diante de uma situação semelhante. Se a declaração da advogada pode ser enquadrada no Art. 20 da Lei 7.716/89, por que as INÚMERAS declarações feitas de público e constantes em órgãos de divulgação vinculando-a ao município e, portanto, ao povo de Nova Petrópolis não são enquadráveis neste mesmo artigo, pois, sem dúvida, permitem deduzir que se queria atingir os “alemães” deste município?
Senhora Delegada, eu ficaria muito grato por uma posição sua a este respeito. Há muito tempo gostaria de entender por que se pode agredir “alemães”, sem qualquer consequência, mas há uma alaúza enorme quando outros grupos são agredidos. Não posso acreditar que uma posição semelhante ou igual a que – até prova em contrário – está vigorando no MPF-RS também esteja vigorando em nossa Secretaria de Segurança Pública, em especial em sua delegacia especializada em combater a intolerância.
Publiquei uma nota sobre o caso desta semana, em meu site pessoal, cujo link está abaixo. Estou refugiado do coronavírus no interior do estado, não tenho celular, a única possiblidade de contato comigo é o e-mail
https://www.renegertz.com/noticias/9-notas/165-arbeit-macht-frei
Muito obrigado.
René Ernaini Gertz
Passados 30 dias, sem qualquer retorno, divulgo a informação e o e-mail, com dois objetivos: a) para resguardar meus próprios interesses (que ninguém me acuse, no futuro, de ter enxergado um problema, sem tê-lo denunciado a quem de direito); b) para manifestar minha preocupação com o fato de que a ausência de uma reação da delegada pode significar que possa vir a ocorrer situação semelhante à ocorrida quando um integrante do MPF em Lajeado desencadeou uma desneonazificação no vale do rio Taquari, porque, no seu mais rasteiro senso comum, estava convicto de que populações originárias de “colonização germânica” possuem uma “tendência” ao neonazismo; com este precedente, não constitui nenhuma fantasia exótica imaginar que alguma autoridade bem intencionada possa vir a desencadear uma desnazificação de Nova Petrópolis (aliás, existem sugestões concretas deste tipo, veiculadas em órgãos de divulgação, em relação ao povo “alemão” de Santa Catarina!); como pesquisador sobre o assunto, tenho algo a dizer que vai um pouco além do mais rasteiro senso comum, e a delegada Andrea Mattos não se teria humilhado ao dar-me ouvidos, pois – mesmo não sendo doutor em “Ciências Jurídicas e Sociais” – sou doutor por uma universidade estrangeira que se localiza num nível bem acima das melhor classificadas universidades brasileiras, nos rankings internacionais, e o título está devidamente revalidado, e oficialmente reconhecido em todo o território nacional brasileiro. [15/4/2021]
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