Para quem não acompanhou a história, é necessário recapitular. Em 20 de abril de 2009, foi assassinado, no Paraná, um casal de supostos ou efetivos “neonazistas”, alegadamente por causa de uma disputa interna no grupo. Em maio, uma pessoa acusada de participar do crime, Jairo Maciel Fischer, foi presa em Teutônia/RS, onde ele – vindo do Paraná – trabalhava há cerca de 18 meses, numa fábrica de laticínios. A prisão desencadeou um verdadeiro delírio, porque “neonazistas” estavam sendo monitorados e presos no estado desde 2003, mas sempre na região metropolitana de Porto Alegre, e, mais recentemente, em Caxias do Sul. Como a unanimidade do senso comum imagina que “neonazismo” é, necessariamente, um produto exclusivo da “colônia alemã”, o alvoroço, até então, fora relativamente contido, porque, decididamente, não havia como ligar os casos anteriores à “colônia”. Isso, no entanto, mudou, de forma radical, a partir do episódio de maio de 2009.

            Não adiantou o delegado de polícia de Teutônia divulgar a informação de que no município não acontecera absolutamente nada mais que a prisão de Fischer, a pedido da polícia paranaense. Órgãos de imprensa enxergaram no acontecido uma oportunidade para turbinar a venda de seus produtos, jornalistas a oportunidade de, finalmente, conquistar um Prêmio Esso de Jornalismo. Criou-se uma verdadeira histeria. Até o dinheiro dos pesados impostos que pagamos foi jogado pela janela. A deputada gaúcha Maria do Rosário Nunes requereu, na Câmara dos Deputados, a criação de uma Comissão Externa para investigar o caso (a famigerada CEXNEONA), que grassou durante dois anos, gastando nosso dinheiro, sem qualquer resultado, pois até hoje – apesar de insistentes pedidos – não consegui obter qualquer notícia sobre um relatório dessa espalhafatosa comissão.

            Como não aconteceu nada mais de especial em Teutônia, não restou outra alternativa aos espalhafatosos do que acabar silenciando sobre o caso. Mas, pouco mais de um ano depois, em 20 de agosto de 2010, placas de trânsito e paradas de ônibus ao longo da rodovia que atravessa o município – a Via Láctea – amanheceram pichadas com suásticas e dizeres racistas. Estava reinstalada a laúza – manchetes sobre o “retorno do neonazismo a Teutônia” pipocaram pela imprensa. Poucos dias depois, porém, tanto o então delegado de polícia local, o mesmo de 2009, Mauro José Barcellos Mallmann, quanto o delegado porto-alegrense Paulo César Jardim, que havia cerca de oito anos monitorava e combatia “neonazistas” em todo o estado, fizeram declarações públicas enfáticas de que as pichações não haviam sido feitas por malfeitores locais. Mesmo antes das declarações categóricas dos dois delegados, havia o indício suspeito de que algumas das suásticas tinham sido desenhadas erradas.

            Mas também a lógica indicava ser pouco provável que as pichações tivessem sido feitas num mutirão da população local. É amplamente conhecido que Teutônia figura na lista dos 50 municípios brasileiros com menor índice de analfabetismo. O bom senso diz que uma população dessas não pode ser burra ao ponto de não saber que desde a prisão de Fischer, em maio de 2009, estava sendo vigiada, quase individualmente, 24 horas por dia – fato confirmado pelo delegado Jardim, ao desmentir que o “neonazismo” havia retornado: “Eu afirmo que não existe grupo nazista em Teutônia... Eu tenho excelentes informantes na região, e esse tipo de crime, com certeza, não existe lá” [para não alongar o texto, deixo de indicar as fontes, porque elas estão em outros textos deste site, e também no meu livro O neonazismo no Rio Grande do Sul].

            Até hoje, não há informações sobre quem fez as pichações, mas, muito provavelmente, foi um atentado terrorista, motivado pelos preconceitos seculares contra a população teutoniense. Independente de quem praticou o ato e qual a motivação, o caso, mais uma vez, teria caído no esquecimento. Mas, 20 dias depois do ocorrido, primeiro a imprensa de Lajeado (Rádio Independente e jornal O Informativo do Vale, ambos em 11/9/2010), depois a de Porto Alegre (Correio do Povo, em 13/9/2010) noticiou que o Procurador da República em Lajeado havia instaurado um procedimento para investigar o caso (transformado em inquérito civil público, em 1º de março de 2011). A ênfase da notícia recaiu sobre a informação de que uma antropóloga participaria dessa ação – O Informativo do Vale (p. 26) mancheteou: “Antropologia no combate ao neonazismo”.

            Pessoalmente, só tomei conhecimento dessa iniciativa vários meses depois, quando, conhecedor dos desmentidos categóricos dos dois delegados de polícia, dos preconceitos seculares e do imaginário absolutamente fértil, ainda que totalmente infundado, a respeito da população de origem alemã deste estado, e, em especial, de alguns lugares, como Teutônia, que no próprio nome se “trai” como “colônia alemã”, fiquei preocupado. Mesmo antes de obter maiores informações, publiquei, neste site, uma nota intitulada “A coisa está ficando cada vez mais esquisita...”, na qual expressei os motivos de minha preocupação.

            Foram, basicamente, os seguintes: o Procurador da República, com seu ato, mostrava desconfiança em relação ao veredito das autoridades policiais, mas não propunha um aprofundamento da investigação criminal, mas sim indicava para uma investigação de caráter antropológico, isto é, não para identificar os possíveis pichadores, mas para avaliar a coletividade em que as pichações aconteceram, fato que denotava que o procurador pressupunha uma culpa coletiva; a bestialogia explícita cometida por uma mestra em Antropologia pela UNICAMP em relação ao tema “neonazismo” no “sul” do Brasil, que eu havia analisado, aumentava minha preocupação; e, finalmente, o fato de que – como já foi dito – havia registros de manifestações classificadas como “neonazistas” desde 2003, na região metropolitana e em Caxias do Sul, mas nunca se ouvira que o Ministério Público Federal se metera no assunto, sugeria que ele considerava o caso de Teutônia como especial (e a lógica subjacente só poderia ser a de que aqui os supostos atos aconteceram numa coletividade, num ente “antropológico”, diferente dos casos anteriores, uma coletividade talvez vista como até geneticamente predisposta ao “neonazismo”), e, por isso, muito mais perigoso, necessitando de uma intervenção cirúrgica. Esses motivos eram suficientes para ficar preocupado.

            Como o ato de instauração do inquérito civil público estabelecia que ele se estenderia por um ano, fiz contato com a chefia do MPF-RS, em março de 2012, perguntando pela existência de um relatório a respeito. Pouco tempo depois, recebi um relatório, confeccionado pelo próprio procurador que desencadeara o processo. Sua leitura potencializou minhas preocupações, e, por isso, publiquei uma dura crítica neste site, sob o título “Que Deus proteja este nosso Rio Grande de virar uma nova Bósnia!”. Resumidamente, minhas críticas foram as seguintes: efetivamente, o procurador não tivera nenhuma preocupação em investigar a “verdade” sobre os supostos atos “neonazistas”, assumindo-os como fato, apesar dos claros indícios em contrário (indícios até citados, e não contestados, no relatório!); ainda que no relatório fosse citado apenas um pequeno trecho do parecer da antropóloga, era preocupante sua proposição de medidas corretivas contra o “conjunto dos concidadãos de Teutônia”, fato que, mais uma vez, sugeria que toda a população fora considerada, por ela, como “neonazista”; as medidas corretivas foram anunciadas não só para o município de Teutônia, mas para mais quatro outros (no conjunto, os cinco mais populosos da área de competência do MPF de Lajeado), indicando, definitivamente, que aqui se pressupunha uma maldade – se não genética, então ao menos culturalmente – inata na população de toda a região, pois não havia quaisquer notícias sobre atos “neonazistas” em nenhum desses quatro municípios, sendo que sua similitude com Teutônia consistia no fato de que a população de todo o vale do rio Taquari, à exceção de Encantado, é vista como predominantemente de origem alemã; como essa população fora vítima de medidas repressivas durante a Segunda Guerra Mundial, essa nova onda, que não deixava de ser repressiva, poderia desencadear conflitos de efeitos imprevisíveis; mas minha crítica possivelmente mais contundente visava ao fato de que o procurador presidira, em 11 de maio de 2011, uma reunião pública, em Porto Alegre, na qual estiveram presentes pessoas que se declararam representantes de instituições claramente identificadas com determinadas “etnias” – considerei, e continuo considerando, esse um ato de grande irresponsabilidade, pois mesmo que, eventualmente, não se tenha verbalizado que se estava ali para discutir supostos atos “neonazistas” entre uma população de origem alemã, isso era evidente para todos os presentes (“nitroglicerina pura para desencadear uma carnificina étnica neste estado!”, escrevi no texto).

            Preocupado com aquilo que considerei um ato de leviandade por parte do procurador, renovei minhas críticas no meu citado livro (p. 112-125). Apesar de datado de 2012, ele efetivamente entrou em circulação em fevereiro de 2013. De imediato, o enviei à procuradora-chefe do MPF-RS, acompanhado de longa carta com considerações a respeito do caso. No final, requeri acesso ao processo. Com data de 12 de março de 2013, recebi carta assinada pelo então Procurador da República em Lajeado (o instaurador do inquérito havia deixado o cargo em 31 de julho de 2012), comunicando que o inquérito havia sido arquivado e enviado para homologação ao MPF em Brasília, mas que “tão logo os autos retornem a esta Procuradoria poderão ser consultados”.

            Foi demorado, mas, finalmente, em junho de 2014 o processo retornou a Lajeado. Recebi, então, correspondência do agora procurador local, com um “despacho” que confirmava a possibilidade de acesso, mas ponderava que havia “documentos que contêm informações escolares e pessoais de alunos e professores que devem ser mantidos em sigilo, pois dizem respeito exclusivamente a estas pessoas, assim como informação policial da fl. 233, com considerações de ordem pessoal sobre pessoa então investigada”. Com isso, não tive acesso às folhas 16-56, 62-90 e 233. Naquilo que segue, tecerei considerações sobre alguns aspectos do processo. Antecipo que a documentação não contém revelações bombásticas, e não me obriga a retratação, revogação ou reformulação de qualquer uma das minhas avaliações anteriores sobre os atos do procurador. Vamos a alguns pontos evidenciados pela documentação.

            Comecemos pelo “despacho de instauração” do procedimento, datado de 1º de setembro de 2010. Nele, o procurador confirma que seu conhecimento do caso provém de divulgações na imprensa, a qual teria “reiterado que continuam [!?] ocorrendo problemas relacionados à disseminação de símbolos nazistas, bem como material de propaganda dessa natureza, no município de Teutônia” (fl. 1). Logo, vou tentar mostrar que, aparentemente, o procurador confia mais naquilo que chega informalmente aos seus ouvidos (aqui, pela imprensa) do que nas informações formais prestadas por autoridades policiais, por exemplo (tanto Polícia Civil quanto a própria Polícia Federal).

            No parágrafo seguinte, ficam claros os pressupostos que levaram a uma evidente desconfiança em relação ao trabalho da polícia, e à necessidade de buscar uma solução na Antropologia. Nesse sentido, escreve que, além de uma ação no campo criminal, é necessário que “verifique-se e estude-se a viabilidade de uma atuação no âmbito cível, também, no sentido de detectar e prevenir determinadas situações que possam estar propiciando a instalação e expansão dessas ideias”. Para isso, determinou investigar as escolas locais, “e proceder-se a estudos sobre cultura [!], situações, enfim, que possam estar eventualmente incitando à prática desses atos” (fl. 1). Essas passagens denotam claramente a convicção preconcebida do procurador de que a “cultura” local ("alemã"?) estava contaminada, independente de quem tivesse desenhado as suásticas.

            Insisto, de forma enfática, que a imprensa vinha publicando notícias a respeito de atos “neonazistas” na região metropolitana, e, no mínimo desde 2009, também em Caxias do Sul (onde, inclusive, havia referências a supostos ou efetivos assassinatos, portanto, em tese, fatos muito mais graves que aqueles noticiados para Teutônia – cf. p. 90-92 do meu livro). À folha 100, encontra-se ofício, com data de 29/10/2010, do juiz da 8ª Vara Criminal de Porto Alegre, ao MPF, em que solicita “informar a este juízo se tramita ou tramitou perante o Ministério Público Federal investigação acerca de práticas discriminatórias e nazistas no Estado do Rio Grande do Sul, na seara cível ou criminal”. A resposta está na folha 104, com data de 23/11/2010, assinada pelo Procurador da República Rodolfo Martins Krieger, indicando unicamente o procedimento administrativo em pauta, dado que sugere que em relação aos casos anteriores o MPF não demonstrou qualquer interesse, pois, certamente, seriam referidos na resposta à consulta do magistrado. Por essa razão, pergunto, formalmente, ao MPF se houve instauração de inquéritos civis públicos em relação aos casos anteriores? Caso negativo, por que não? por que não? por quê? Por que a “cultura” dessas outras regiões, por natureza, não “incita à prática desses atos”, e, se eles de fato, aconteceram, sua periculosidade nessas regiões é desprezível – ao contrário daquilo que acontece quando eles se verificaram no vale do rio Taquari?

            Até aqui, estou arrolando apenas indícios de que o procurador tomou as medidas que tomou porque estava imbuído dos preconceitos correntes no senso comum de que a população de origem alemã nunca foi verdadeiramente brasileira, que sempre foi nazista, e que, portanto, chegou a hora de “desneonazificá-la”. Não havia me dado conta de que há uma declaração em que esse fato fica explícito. A citada notícia sobre a instauração do procedimento em O Informativo do Vale, de Lajeado, 11/9/2010, p. 26, está entremeada de declarações textuais do próprio procurador, onde se encontra a seguinte frase: “Queremos descobrir o que está levando a isso, entender o porquê de algumas regiões do Vale do Taquari – de colonização germânica – terem esta tendência”. Como o procurador anexou cópia dessa matéria ao processo (fl. 13), sem qualquer ressalva de que suas palavras tenham sido deturpadas, deve-se partir do pressuposto de que ele, efetivamente, as pronunciou. Incorreu em ato falho, traiu-se, produziu a prova de que minhas deduções não estão equivocadas! A rigor, essa descoberta esclarece tudo. Não se precisaria mais queimar fosfato com exegeses ou interpretações. Com essa constatação, também fica claro que o procurador quis dizer, ao escrever em relatório datado de 29/6/2011, que “o ressurgimento de um movimento neonazista revela graves problemas de índole cultural, e, ainda que mais superficialmente, também de origem econômica e educacional” (fl. 156). De fato, não há nos autos a que tive acesso quaisquer dados concretos que fundamentassem tais afirmações.

            Com essa espantosa descoberta, partindo de um agente de Estado, fiquei pensando – talvez eu seja um cidadão de sorte. Sou produto de "colonização" russo-ucraniana. Mesmo assim, as forças armadas brasileiras me declararam oficial, inclusive com elogio em boletim, considerando-me, portanto, cidadão absolutamente confiável para defender a pátria – até para morrer por ela –, caso necessário. Se minhas origens estivessem na “colonização germânica” – diante das muitas manifestações "suspeitas" que já fiz por essa vida afora –, talvez o procurador tivesse aberto um inquérito civil público para propor a cassação de minha carta-patente. Posso imaginar que centenas de reservistas de Teutônia estejam na mesma situação – e sintam da mesma forma!

            Insiro aqui um pequeno comentário sobre a aparente preferência por informações informais, e uma possível desconfiança em relação a autoridades policiais. A coisa começa com uma indelicadeza em relação ao delegado Mauro José Barcellos Mallmann, que, naquele momento, era titular da delegacia de Teutônia há 10 anos. O ofício encaminhado para “solicitar informações acerca do inquérito instaurado, bem como outras que se entender cabíveis” diz o seguinte, no cabeçalho: “Ilmo. Sr. PAULO CÉSAR JARDIM, – Delegado de Polícia – Delegacia de Polícia de Teutônia” (fl. 9).

            Na folha 58, está um e-mail enviado por um funcionário técnico administrativo do MPF de Caxias do Sul, com data de 13/9/2010, no qual informa que, navegando na Internet, deparou-se, casualmente, com um site de conotação “neonazista” (www.nacional-socialismo.com). Sabedor da instauração do procedimento para a região do Vale do Taquari, informava o endereço. Em ofício datado de 16/9/2010, o procurador requisitou ao Delegado de Polícia Federal – Núcleo Especializado em Crimes Cibernéticos a realização de investigação sobre o citado endereço eletrônico, “principalmente se há envolvimento de algum dos municípios da subseção de Lajeado/RS, comunicando-se a esta Procuradoria da República o resultado da diligência” (fl. 92). (Entre parênteses: aqui também transparece a desconfiança não só em relação ao povo de Teutônia, mas em relação à população de todos os municípios da região). Apesar de as folhas 95-98 registrarem troca de e-mails sobre o assunto, entre integrantes da PF, esta, aparentemente, não conseguiu detectar nada de especial a respeito.

            É que um ofício com data de 24 de novembro de 2010, de Lajeado, assinado pelo procurador Rudolfo Martins Krieger (que não é o mesmo que instaurou o procedimento), dirigiu-se ao então Superintendente Regional da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, Ildo Gasparetto, “a fim de solicitar informações referentes a investigação do site” (fl. 105). Em 11 de janeiro de 2011, o procurador que instaurou o procedimento reiterou o pedido anterior a Ildo Gasparetto (fl. 111) – mostrando que a Polícia Federal não havia respondido. Em 31 de janeiro de 2011, uma delegada da PF informou que “não há nenhuma investigação do site” em tramitação (fl. 121). Em ofício de 15 de fevereiro, a delegada da PF Diana Calazans Mann relatou que “não há nenhum apuratório instaurado até a presente data referente ao site” (fl. 123). Essa delegada é expert em “neonazismo”, pois esteve presente na “memorável” primeira reunião pública da Comissão Externa criada pela deputada Maria do Rosário Nunes para investigar o tema (a tristemente famigerada CEXNEONA), na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em 13/7/2009. Prestou, ali, um depoimento técnico, objetivo sobre sua área de atuação dentro da PF, mostrando que é do ramo.

            Tudo isso sugere que a PF não se mostrou entusiasmada em investir tempo no pedido do procurador. Mas ele insistiu. Em novo ofício, de 6 de abril de 2011, dirigiu, mais uma vez, correspondência a Brasília – como da primeira – encarecendo seu pedido para que fosse realizada uma “investigação sobre o sítio” (fl. 128). Finalmente, um delegado da PF da Capital Federal, em escrito de 20/4/2011, comunicou que fora aberto “procedimento de averiguação preliminar, nesta data, a fim de apurar os ilícitos” (fl. 151), mas a partir desse ponto até o final do processo (do qual não tive acesso apenas à folha 233, que, com certeza, trata de outra coisa) não há qualquer documento da PF informando sobre resultados, fato que deve significar que a instituição não encontrou nada, talvez nem tenha tentado, enquanto o procurador investiu tempo significativo nessa pista que lhe fora sugerida pelo zeloso funcionário do MPF em Caxias do Sul.

            Agora, algumas palavras sobre o parecer da técnica pericial em Antropologia a respeito do episódio (fl. 113-119). Publico-o, para que os leitores possam formar sua própria opinião [clicar aqui]. Tomando de empréstimo um bordão do jornalista Elio Gaspari, ganha uma viagem de ida e volta, via Expresso Azul, com direito a bilhete de entrada, para o Antropológico Municipal de Teutônia quem conseguir explicar que ela quis dizer com suas “leituras antropológicas sobre ideologias totalitárias” (item 1 do texto) e mesmo com as considerações “sobre o caso concreto” (item 2), que visam a fundamentar as sugestões de medidas práticas a serem aplicadas ao povo do município – estas, apesar de eu tê-las classificado de folclóricas e até hilariantes, são mais concretas e compreensíveis. Para dar uma ideia da consistência do parecer, basta citar o fato de que a bibliografia arrolada para o tema “neonazismo no Brasil” se restringe a uma única fonte – um trabalho de conclusão de curso de especialização, isto é, a tarefa escolar de um aprendiz.

            Mesmo sendo difícil entender que a doutora-antropóloga quis dizer, transparecem algumas coisas sintomáticas, no seu texto. Transcrevo: “Estudos relatam que o pensamento nazista estendeu-se para além das fronteiras nacionais da Alemanha do século XX, constatando-se evidências do mesmo aqui no Brasil – mais especificamente na região sul – que tem destacado histórico de imigração europeia nos três estados. Em livro intitulado ‘A 5ª coluna no Brasil: a conspiração nazi no Rio Grande do Sul’ (1942), o tenente-coronel Aurélio da Silva Py (chefe de polícia do Rio Grande do Sul) escreve sobre a organização desses grupos nesse estado, trazendo documentos, fotos, cartas, entre outros materiais que ilustram a força desse movimento na região”.

            O fato histórico de que o maior número de pessoas filiadas ao partido nazista não se localizou nos estados do “sul”, mas sim em São Paulo, não constitui erro comprometedor, mas o recurso ao livro de Py como fonte exclusiva – quando, entrementes, há considerável produção historiográfica sobre aquilo que esse polical “aprontou”, e sobre as reais “maldades” aqui praticadas pelos cidadãos de sobrenome alemão, naqueles anos – constitui um claro manco do texto. Se a antropóloga tivesse lido o texto do policial com atenção, teria notado que nele não há qualquer referência a Teutônia. Se tivesse feito “pesquisa de campo” no município, os concidadãos locais lhe teriam explicado por quê. E se tivesse aprofundado seus estudos a repeito do autor do livro teria descoberto que ele foi destituído do cargo em 1943, justamente pelo clamor contra os atos criminosos praticados pela polícia que ele comandava.

            Se tivesse estudado os acontecimentos posteriores a 1945, teria descoberto que o procurador-geral do estado, naquele momento, João Bonumá, foi um homem de fibra, um homem imbuído de um sadio princípio que se firmou na era moderna – e do qual não podemos abrir mão! – de que leis devem valer para todos. Disse que se a lei foi aplicada (na maior parte, das vezes, de forma infundada) contra cidadãos brasileiros cujo único pecado foi o de terem um sobrenome alemão, a lei também deveria ser aplicada a quem cometeu esse erro, e erros conexos – que foi o caso de boa parte dos policiais comandados por Py. Montou um inquérito que pesou 13 quilos, com provas de que Py e mais 51 policiais sob seu comando praticaram torturas, extorsões, roubos e outros crimes hediondos contra cidadãos de sobrenome alemão e italiano, no exercício de suas funções.

            O processo foi encaminhado para julgamento ao Tribunal de Justiça do Estado, em 1947. Numa decisão que constitui lamentável mancha em sua história, o pleno do tribunal de então, por maioria de votos, decidiu lavar as mãos, e não apreciar o mérito da ação, arquivando o processo, sob o argumento de que os fatos apontados haviam ocorrido em tempo de guerra, motivo pelo qual o TJ-RS não seria competente para julgar o caso. Para que ninguém pudesse cair na bobeira de recorrer a alguma outra instância, o prédio do tribunal e o Palácio da Polícia – onde estava depositada a maioria dos documentos comprobatórios do inquérito de Bonumá – foram incendiados.

            Quem se aventura a colocar sob suspeita seus concidadãos por causa de supostos pecados cometidos por seus avós, e, para isso, recorre ao livreco de Py, comete um ato de grande irresponsabilidade, pois este policial foi um dos principais responsáveis pela disseminação da impressão de que eles foram, massivamente, nazistas e cometeram atos de lesa-pátria. Quem recorre a Py para insinuar uma acusação tão grave não pode ignorar quem esse indivíduo realmente foi.

            As consequências das concepções que transparecem nas referências ao livro de Py se fazem notar mais adiante – não se trataria apenas de cuidar dos casos individuais de quem tenha feito as pichações (independente de quem efetivamente foi o responsável), seria necessário depurar a coletividade como um todo. Transcrevo: “é de suma importância não nos descuidarmos da dimensão de prevenção que a situação exige, e de modo a não focar unicamente na dimensão individual dos comportamentos desviantes, e que fragilizou o conjunto da sociedade”.

            Será que essa afirmação não está inspirada em Py, que, a partir do fato de que algumas pessoas estavam filiadas (até 1937, de forma legal, inclusive sob manifestações de simpatia por parte das mais altas autoridades deste país) ao partido nazista, promoveu um banzé, que, no mínimo, dava a impressão de que ele considerava que absolutamente todos os concidadãos de sobrenome alemão deste estado eram criminosos nazistas? Gera curiosidade também a afirmação de que o conjunto da sociedade de Teutônia estaria fragilizado. Que dados concretos levaram a doutora-antropóloga a essa afirmação? Ela não é secundária, pois até motivou uma manifestação de compaixão com essa pobre gente: “Especificamente, e com vistas a um tratamento das implicações negativas que vem afetando o convívio social da localidade municipal em questão, estamos visualizando encaminhamentos no sentido de buscar protegê-lo [e] ao mesmo tempo favorecê-lo a partir de um planejamento de trabalho para os vários espaços sociais da cidade, em particular as instituições de ensino escolar”. Santo Deus! Essa moça tem ideia daquilo que é Teutônia?!

            Na verdade, a responsabilidade da doutora-antropóloga pelas recomendações que fez para o endireitarmento, para o conserto do “conjunto dos concidadãos de Teutônia” é relativa. É que quase tudo isso estava pré-determinado no próprio pedido que o procurador lhe encaminhou. Vejamos. Repito trecho do despacho de instauração do processo: “Esse o aspecto penal [as pichações], o que não impede, outrossim, verifique-se e estude-se a viabilidade de uma atuação no âmbito cível, também no sentido de detectar e prevenir determinadas situações que possam estar propiciando a instalação e expansão dessas ideias” (fl. 1). E o ofício formal dirigido à antropóloga solicita a “realização de estudos sobre a questão, objetivando adoção de medidas para a localização e prevenção/repressão dos fatos” (fl. 99). Como já destaquei em texto anterior, o procurador apresentou “fatos” prontos à técnica pericial. Inclusive a atitude de comiseração para com a desgarrada população de Teutônia foi ideia original do procurador. Na citada entrevista a O Informativo do Vale (11/9/2010, p. 26), em texto redacional, está escrito que o procurador “teme que o Vale do Taquari fique tachado como simpatizante do movimento” – para continuar com as seguintes palavras textuais: “A região não deve carregar esta pecha”.

            Chego às considerações finais. Uma das minhas mais veementes críticas anteriormente publicadas refere-se à presença de pessoas declaradamente ligadas a instituições identificadas com outras “etnias” em uma reunião presidida pelo procurador, em Porto Alegre, a 16/5/2011. De forma cuidadosa, escrevi que ele cometera a imprudência de permitir que essas pessoas assistissem a uma reunião na qual – no mínimo implicitamente – se tratava das supostas ou efetivas maldades cometidas pelos “alemães” do Vale do Taquari. Texto da folha 131, porém, mostra que essas pessoas haviam sido formalmente convidadas para a referida reunião. Piorou!

            Por fim, algumas linhas sobre a campanha de verificação da aplicação do Estatuto da Igualdade Racial nas escolas da região. Essa ideia esteve presente desde o início – portanto também derivou de um pré-conceito. Em minha carta à procuradora-chefe do MPF-RS, perguntei se o procurador poderia citar um único (!) município brasileiro no qual 30 dias depois da instauração da lei ela estivesse sendo cumprida (a lei é do dia 20/7/2010 – e as pichações em Teutônia ocorreram dia 20/8/2010). Mas, em tese, poderia pensar-se que, no decorrer do processo, tivessem sido constatados fatos que vieram a reforçar a necessidade dessa medida. Claro, neste caso minha capacidade de opinar está limitada pelo fato de que não tive acesso à parte do processo que contém a documentação sobre escolas de Teutônia.

            Mesmo assim, há indícios. Nas folhas 7, 8 e 61 encontram-se ofícios a direções de escolas de Teutônia, datados de 1/9/2010, todos com um texto-padrão, no qual o procurador solicita “a lista atualizada do corpo docente e discente”. Nada mais! No restante do processo, não há qualquer outro documento a respeito, a não ser o registro de que os diretores atenderam ao pedido. No termo de arquivamento do processo, o procurador, ao referir-se ao assunto, informou que o pedido às escolas fora atendido e “devidamente trazido aos autos, nas fls. 15/56 e 62/94” (fl. 240b). Mesmo não tendo visto essa parte dos autos, devo concluir que ali não há outra coisa do que aquilo que foi solicitado, isto é, as listas de professores e alunos de algumas escolas (concretamente, de três). A única coisa que posso imaginar se tenha conseguido fazer com essas listas é contabilizar o número de sobrenomes alemães entre professores e alunos para, daí, eventualmente, inferir o nível, o índice de “neonazificação” das mesmas.

            Interessante é aquilo que aconteceu depois que dirigi um e-mail ao então procurador-chefe do MPF-RS, em 5/3/2012, no qual antecipei algumas das críticas que depois aprofundei (o e-mail está nas fl. 180-182 do processo). Há razões para crer que, neste momento, o procurador se deu conta da encrenca em que se metera, e encontrou a saída no tal do desmembramento do processo, pelo qual abandonava a parte criminal, a maldade das pichações (que não conseguia provar!), para abrir um processo cível, em que não se exigiam provas, mas que permitiria uma saída honrosa, ainda que a humilhante convocação de secretários municipais, diretores de escola e professores para reuniões em que, provavelmente, se insistia na necessidade de desentortar os cidadãos de suas comunas, não só continuaram, mas se intensificaram. Pergunto se o Procurador da República responsável pela região do Alegrete também desencadeou, por lá, um processo idêntico? Caso negativo, por quê? por quê?

            Despacho de 21/5/2012 encaminha o desmembramento do processo (fl. 130-131), e portaria do dia seguinte o sacramenta (fl. 237). Finalmente, o termo de arquivamento, datado de 22/5/2012, está nas folhas 238-242, e é justificado com a firmação de que “no que se refere à investigação policial sobre os fatos narrados inicialmente, no tocante à disseminação de símbolos nazistas na cidade de Teutônia/RS, ou mesmo a existência de uma célula neonazista no citado município, tem-se que o inquérito policial concluiu pela sua inexistência” (fl. 240b). Portanto, a confissão de que a suspeição publicamente manifestada sobre o povo de Teutônia, inclusive via imprensa, foi um equívoco!

            Fica totalmente sem justificativa convincente o prosseguimento do processo na área cível, isto é, na verificação do cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial. O procurador escreveu: “Não obstante, mostrou-se necessário o prosseguimento deste expediente, especialmente diante da necessidade de se tratar da questão da diversidade nos Municípios abrangidos por esta Procuradoria” (fl. 240b). Essa é uma afirmação que não se encontra documentalmente fundamentada nos autos. O procurador, na sequência, se reporta exclusivamente à recomendação da perita em Antropologia, datada do início do processo, e que foi feita – como tudo indica – de forma completamente abstrata, no sentido de que a mesma não fez qualquer “pesquisa de campo” nem em Teutônia nem, muito menos, em toda a região. Como manifestei em nota irônica no meu site, é provável que a antropóloga não tenha a mínima ideia para que lado fica Teutônia (e muito menos Bom Retiro do Sul etc.).

            Resta uma última observação. Desde o início do processo, houve referências a uma pessoa que possuiria “livros nazistas” em Teutônia. A pessoa é conhecida na comunidade por exercer seu direito constitucional de liberdade à informação e ao pensamento, procurando ler textos com dados e interpretações alternativos sobre nazismo e Segunda Guerra Mundial. Não a conheço pessoalmente, mas é provável que se trate de um revisionista. Como historiadores, todos nós devemos ser e somos revisionistas, e o ensinamos aos nossos alunos, pois qualquer contribuição que queiramos dar para o avanço da Ciência Histórica exige que, antes, revisemos, que critiquemos aquilo que outros disseram ou escreveram, para, através de nossas pesquisas, refutar, parcial ou totalmente, aquilo que foi produzido por outros, apresentando fatos ou interpretações alternativos.

            É possível que essa pessoa tenha sido a visada com as pichações na rodovia. E, até prova em contrário, este parece ter sido o único indício de existência de “neonazismo” em Teutônia. Por isso, antes de arquivar o processo, o procurador queria certificar-se de que não viria a ser vítima de nenhuma surpresa, e oficiou uma última vez ao delegado Mauro Mallmann, em 21/5/2012, pedindo “informações atualizadas acerca da investigação policial conduzida nesta DP em razão de denúncia no jornal O Informativo, a respeito de suposta existência de grupo(s) neonazista(s) no município” (fl. 232). É certo que a resposta de Mallmann está na folha 233, cujo acesso me foi vetado, sob o argumento de que contém “considerações de ordem pessoal sobre pessoa então investigada”. Mas essa resposta não deve conter nada de escabroso sobre o referido cidadão, pois o procurador oficiou ao mesmo delegado, em 3/6/2012, comunicando que o processo “foi encaminhado à 1ª Câmara de Coordenação e Recursos para homologação do arquivamento” (fl. 243). Se Mallmann tivesse referido ações nefastas desse cidadão, certamente o arquivamento não teria sido efetivado.

            Por tudo isso, mantenho minhas críticas à condução do episódio no Vale do Taquari/Teutônia. Estou convicto de que aqui se tratou com amadorismo uma situação que poderia desencadear conflitos étnico-culturais, que, posteriormente, seriam de difícil erradicação. As barbáries cotidianamente noticiadas como resultado de conflitos étnicos, por este planeta afora, justificam plenamente a necessidade de que o MPF tome medidas para que situações como a de Teutônia não voltem a ser tratadas de forma amadorística. Em acordo com o disposto no Art. 127 da Constituição Federal, o site do MPF traz como "epígrafe" a informação de que sua missão consiste em “promover a realização da Justiça, a bem da sociedade e em defesa do Estado Democrático de Direito”. Gerações futuras enxergarão os acontecimentos de Lajeado/Teutônia como uma mancha tão tenebrosa na história do MPF quanto o é a omissão do tribunal pleno diante das barbáries praticadas por policiais gaúchos durante a Segunda Guerra para a história do TJ-RS.

            Por outro lado, claro, sei que não existe hierarquia entre os procuradores, e que eles agem guiados exclusivamente por sua consciência. Mesmo assim, penso que o MPF como instituição materialmente sustentada pela sociedade, através dos impostos que nós cidadãos pagamos, deveria fazer uma reflexão sobre o episódio em pauta.

            Ninguém, de sã consciência, pode ser contra o combate ao racismo e a preconceitos, mas esse combate deve orientar-se pelo princípio da universalidade, isto é, devem ser combatidos todos os tipos de racismo e de preconceitos. Por essa razão, formulo aqui uma pergunta pública ao MPF: por que – até prova em contrário – o MPF nunca instaurou procedimentos para averiguar afirmações públicas de cidadãos (até de agentes de Estado!!) atribuindo a existência de “neonazismo” no Rio Grande do Sul a determinadas “etnias”, sem a apresentação de provas para essas afirmações? Esse caso, em tese, não constitui delito de difamação previsto no Art. 20 da Lei 7.716? Formulei a mesma pergunta ao MP-RS, sem resposta – acontece que o MP-RS tem a seu favor o fato de que pode alegar que também nunca se envolveu em uma tentativa de “desneonazificação” dessas “etnias”, quando, após os acontecimentos em Lajeado/Teutônia, o MPF não tem como alegar o mesmo. [31/7/2014]