Há, sim, manifestações neonazistas no Rio Grande do Sul, mas exagerar o fenômeno é prejudicial para todo o estado.

 

 

 

 

            Há momentos em que notícias sobre fatos se adensam. Vivemos um momento desses em relação à intolerância, no Rio Grande do Sul. Refiro-me àquilo que atende pelo nome de “neonazismo”. Em meados deste ano, serão julgados jovens acusados de, em 2005, terem dado vazão à sua personalidade intolerante, em Porto Alegre, atacando três outros jovens judeus. Um deles sofreu ferimentos graves.

            Talvez pela aproximação do julgamento, proliferaram, nas últimas semanas, notícias sobre “neonazismo” em nosso estado. Em 6 de abril, o jornal O Globo apresentou em seu portal online uma manchete impactante: “Proliferação de grupos neonazistas aterroriza Sul”. E no dia 22 de abril, Zero Hora publicou matéria sobre pesquisa de Adriana Abreu Magalhães Dias, segundo a qual “RS é o segundo que mais baixa material neonazista” da Internet. A reação a tais notícias, no senso comum, pode ser vista em comentários deixados nos portais: “Sul? Quer saber de desgraças, só ir ou ler notícias de lá”; “o sul do Brasil, de um modo geral, está gerando um caus [sic] para o país”. Ou seja, o Rio Grande do Sul, que sempre foi visto com certa desconfiança por uma parte da população do restante do país, piorou sua má fama.

            A pergunta que se impõe é se a presença “neonazista” – e a má fama que traz ao estado – é verdadeira ou não. Indiscutível é o fato de que aqui existe “neonazismo” – os rapazes judeus foram atacados, um segurança negro do TRENSURB foi agredido, e ocorreram outros episódios violentos com conotação racista e preconceituosa – enfim atos de intolerância. A necessidade de repressão não se discute.

            Mas em um olhar atento às próprias notícias e às pessoas que serviram de fonte, aparecem indícios que, no mínimo, sugerem a necessidade de nuançar as dimensões do “perigo neonazista”. Tomemos a matéria de O Globo. Segundo ela, seriam 500 os “neonazistas” fichados por autoridades gaúchas a aterrorizar o estado. Acontece que a autoridade que forneceu essa informação há anos vem insistindo que fichou, ao todo, “entre 30 e 40” malfeitores, e, meses atrás, em declaração pública, fixou esse número em exatos 35.

            Não se sabe se o jornalista errou, ou se, da noite para o dia, cada um dos rapazes se multiplicou, milagrosamente, por 15. Em qualquer dos casos, uma análise ponderada nos diz que nosso Estado Democrático de Direito deveria possuir capacidade policial e organização judiciária para lidar com 500 meninos (todos abaixo de 30 anos!) – e ainda mais com 35 –, sem necessidade de alarmar o mundo com o suposto terror anunciado no título da matéria.

            Quanto à notícia de Zero Hora sobre a intensidade da navegação em sites “neonazistas” a partir do território gaúcho, uma primeira observação a ser feita é que dela foram derivadas ilações sobre o número efetivo de comprometidos. O jornal informa que a autora da pesquisa estabeleceu esse número em 42 mil. Ela diz utilizar uma metodologia de pesquisa que poucas pessoas dominam. Mas mesmo como leigos, certamente não está errado perguntar se o acesso a um site constitui indicador seguro de que o navegador é “neonazista”.

            Mas há outras ponderações possíveis. A pesquisadora afirmou que metade de todos os “neonazistas” existentes no Brasil está em Santa Catarina (45 mil). Só que as autoridades de lá e também pesquisadores locais não conseguem indicar o nome de mais de meia dúzia. Para o Rio Grande do Sul, ela indica 42 mil, mas as autoridades daqui não conseguem nominar mais de 35 (e não 35 mil). Quanto ao Paraná, ela indica 18 mil. De fato, existe lá uma lista com 12 nomes; em 10 de julho de 2011 – dentro do período abrangido pela pesquisa –, o portal de notícias R7 publicou matéria sobre “neonazismo”, na qual o delegado especialista no tema para aquele estado, Francisco Alberto Caricati, afirmou que “os ataques de neonazistas são mais raros”, confirmando, portanto, a inexistência de hordas deles.

            Críticas feitas às pesquisas e aos resultados divulgados por Adriana Dias foram respondidas com extrema intempestividade, incluindo insinuações sobre possíveis posturas e interesses escusos defendidos pelos críticos. Essas insinuações encontram-se em manifestações escritas do tipo: “como acredito que o senhor não deva ter motivações políticas duvidosas...”; “o que dizer da nota, tirada de seu contexto, sabe lá com que intenção”.

            Por tudo isso, não deixa de ser legítimo sugerir que se modere o entusiasmo em relação aos resultados dessa pesquisa. Aquilo que nós temos é o seguinte: frente ao total de 105 mil “neonazistas virtuais” que ela diz ter detectado no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná, existem, de concreto, listas com um total de pouco mais de 50 “neonazistas em carne e osso”. Estes são palpáveis, visíveis. Naqueles detectados por Adriana Dias deve-se acreditar sem poder vê-los.

            Longos anos de pesquisa sobre o tema sugerem que se deve ter cuidado com caçadores de “neonazistas” muito fervorosos. Voltemos, por isso, ao maior caçador deles no Rio Grande do Sul. Além de ter inflado o número de fichados, desde novembro de 2010 fez, no mínimo, três declarações públicas culpando determinadas “etnias” pela existência desse mal, em nosso estado, ainda que não haja qualquer prova nesse sentido. A periculosidade da divulgação desse tipo de acusação pode ser avaliada pelo fato de que outro agente de Estado resolveu cismar que “o conjunto dos concidadãos” de certo município gaúcho, claramente identificado com determinada “etnia” – até no nome –, deveria ser “desneonazificado”. E para definir as estratégias da “desneonazificação”, promoveu uma reunião a que admitiu três representantes declarados de outras “etnias”. É difícil imaginar ato de leviandade maior que esse!

            Como efeito colateral da forma equivocada em que o “neonazismo” está sendo combatido, o ódio externo ao nosso estado pode tornar-se insuportável, e, internamente, isto aqui ameaça virar uma nova Bósnia. Ainda há tempo para reverter a situação, mas é necessário mudar de maneira radical a estratégia de combate e os pressupostos que a guiaram até agora.


[Publicado em Zero Hora/Cultura, Porto Alegre, 27 de abril de 2013, p. 2]. [30/5/2013]