Quem fala dos resultados da imigração alemã em nosso estado quase sempre pensa em comunidades com alto grau de coesão interna, numa homogeneidade de pessoas no aspecto físico e nos traços culturais. Cidadãos melhor informados sabem, eventualmente, que existem algumas diferenças quanto à procedência regional (pomeranos, westfalianos), quanto à religião (luteranos, católicos), mas mesmo aqueles que têm essa consciência muito logo caem novamente na vala comum imaginando que, apesar de algumas diferenças, todos são vorazes devoradores de chucrute e de Eisbein. Vovó Emília Ikert não tinha a mínima idéia do que fosse Eisbein; quando queria fazer algo especial, fazia Borschtsch e Piroggen – ambos muito pouco germânicos.

 

 

 


 

Elogio da diferença

 

 

            Quem fala dos resultados da imigração alemã em nosso estado quase sempre pensa em comunidades com alto grau de coesão interna, numa homogeneidade de pessoas no aspecto físico e nos traços culturais. Cidadãos melhor informados sabem, eventualmente, que existem algumas diferenças quanto à procedência regional (pomeranos, westfalianos), quanto à religião (luteranos, católicos), mas mesmo aqueles que têm essa consciência muito logo caem novamente na vala comum imaginando que, apesar de algumas diferenças, todos são vorazes devoradores de chucrute e de Eisbein. Vovó Emília Ikert não tinha a mínima idéia do que fosse Eisbein; quando queria fazer algo especial, fazia Borschtsch e Piroggen – ambos muito pouco germânicos.[1]

            Entre nossos cidadãos mais politizados, reiteradamente se manifesta também uma preocupação que vem desde 1824: mesmo que hoje esteja um pouco fora de moda ser nazista, continua a imaginar-se que todos os descendentes de alemães são separatistas ou, no mínimo, muito conservadores.

            E há indícios neste último sentido. O município de Tupandi, no vale do rio Caí, durante os anos 1980-1990 sempre deu em torno de 80% dos votos depositados a governador do estado, no segundo turno, aos candidatos supostamente mais à direita do espectro político. Nas eleições de 2002, o município que se destacou nesse sentido foi Arroio do Padre, no sul do estado, também de colonização alemã – 84% dos votos válidos foram dados a Rigotto.

            Naturalmente, não só conservadores votaram em Marchezan, em Britto ou em Rigotto, mas, independente disso, se a gente fizer uma análise mais apurada do comportamento eleitoral nos municípios típicos de colonização alemã, vai descobrir algo interessante: à medida que formos para o oeste, em direção à fronteira com a Argentina, verificamos um crescimento dos votos para o espectro mais à esquerda. Concretamente, se olharmos para o resultado eleitoral nas colônias mais antigas (sobretudo as menos urbanizadas) ao norte e noroeste de Porto Alegre, veremos que ali não mais de 30% dos votos foram para Collares (1990), Olívio (1994, 1998) e Tarso (2002); já na região central, em torno de Não-Me-Toque e Selbach, esse percentual ficou em torno de 40%. Mas, quando se chega à região do Grande Santa Rosa, na fronteira com a Argentina, há um virtual empate – isto é, nessa região o eleitorado se localiza maciçamente em torno do centro político, uma tendência que caracteriza as mais sólidas democracias do planeta.

            Aqui não há espaço para uma análise dos dados eleitorais dos últimos vinte anos, por isso me restrinjo a citar um único dado: nas últimas eleições a governador (2002) Tarso Genro obteve no conjunto dos vinte municípios que formam o Grande Santa Rosa 39,9% dos votos possíveis, Germano Rigotto 39,5%, os brancos constituíram 1,1% e os nulos 2,1% (no estado todo, a média para Rigotto foi de 42,8%, para Tarso 38,4%; brancos e nulos foram 1,4% e 2,6%, respectivamente); a abstenção ficou 2,5% acima da média estadual (14,6% contra 17,2%).

            Uma das explicações para esse fenômeno é o fato de que no decorrer das migrações internas em direção ao oeste, quem se prontificava a migrar eram os elementos mais dinâmicos, mais modernos das “colônias velhas”. Assim que essa migração teve como conseqüência um processo de seleção dos mais irrequietos, dos mais empreendedores, dos mais “politizados”; e quanto mais esse processo avançou em direção ao oeste, mais essa seleção se aprofundou.

            Não quero, porém, entrar em detalhes desse processo, e concentrar-me, aqui, num segundo fator que pode ajudar a explicar o ecumenismo político que caracteriza as regiões de colonização a oeste. A região do Grande Santa Rosa é tributária da mais extraordinária experiência de colonização de que se tem notícia neste estado. O espaço que se localiza entre as atuais cidades de Santa Rosa e Guarani das Missões começou a ser colonizado, a partir de 1891, sob o nome de Colônia Guarani (que não é idêntica ao atual município de Guarani das Missões), abrangendo territórios hoje pertencentes aos municípios de Senador Salgado Filho, Ubiretama, Cândido Godoy etc. A colônia enfrentou grandes dificuldades, como todas as outras, mas o que interessa aqui é que ela se caracterizou por receber gente de muitas partes do Rio Grande do Sul e de inúmeros lugares do mundo todo. Além do Gaudêncio da Silva que se estabeleceu ali, vieram também Johann Johansson Knckta, Saveli Bujaj, Adolpho Capeletti, Gustav Schultz, Henri van Ecnov, Samsão Formine Doyko, Nikifor Frondrolnk, Alessander Juntaxna, Matts Mattsson Maaempão, Jacob Majer, Francisco Przjbsz. E todo mundo sabia pronunciar esses nomes sem qualquer dificuldade ou sotaque.

            Quem quiser conhecer mais nomes “interessantes” pode consultar Povoadores da Colônia Guarani (1891-1922), de frei Rovílio Costa e suas Edições EST, o qual, dessa forma, possivelmente, sem ter consciência da importância de sua iniciativa, editou, no início deste ano, aquilo que poderá constituir-se no livro mais importante publicado no contexto dos festejos dos 180 anos da imigração alemã.

            Além do português falado pelos Silva e pelos Santos, ainda se falava, de forma intercambiável, no mínimo, alemão, polonês e russo. Quanto à religião, a colônia era predominantemente acatólica. Mas os acatólicos eram muito diferentes entre si: havia vários tipos de batistas (segundo neologismos teuto-coloniais muito peculiares, uns eram os Dossenbaptisten – não fumavam e, em compensação, comiam balas; outros eram os Fummbaptisten – fumavam), membros da Assembléia de Deus, congregacionais, luteranos “riograndenses”, luteranos “missurianos” e muitas outras confissões. Todas elas, ou se vinculavam a igrejas que ainda estavam em processo de institucionalização ou não possuíam vinculação institucional alguma. Isso dava a essas comunidades religiosas um caráter radicalmente democrático. As decisões referentes às comunidades eram tomadas em assembléias das quais participavam não só os homens, mas também as mulheres e os jovens (no caso dos batistas, os já batizados). Os pastores eram contratados após “concurso” – depois que todos os pretendentes ao cargo tinham feito um culto demonstrativo de sua capacidade, a comunidade se reunia e, em votação muitas vezes secreta, fazia a escolha. Com freqüência, os pretendentes à função pastoral eram pessoas da própria comunidade, já que não havia igreja institucional que formasse e impusesse clérigos.

            Quando, mais tarde, as instituições estatais chegaram à Colônia Guarani, foi absolutamente normal para esse povo que a prática “política” deveria seguir o mesmo padrão. Reuniam-se em praça pública para escolher candidatos, depois da eleição acompanhavam, passo a passo, como os eleitos administravam a coisa pública. Muitas décadas depois, os mais destacados intelectuais porto-alegrenses começaram a compulsar bibliotecas inteiras, consultando as obras dos mais importantes filósofos e pensadores políticos, e chegaram à conclusão de que a República só poderia ser re-publicanizada com a instituição daquilo que denominaram “prévias eleitorais” e “orçamento participativo”. As mais tradicionais universidades da Europa ficaram embasbacadas com a novidade e mandaram chusmas de pesquisadores para estudar a descoberta.

            O povo simples da antiga Colônia Guarani não tinha nenhum nome “científico” para suas práticas, mas os deputados de Alecrim e de Santo Cristo fizeram uma visita para explicar o que são e como funcionam as tais “prévias eleitorais” e o tal “orçamento participativo”. Ao final da detalhada explicação, o povo chacoalhou a cabeça e ouviu-se um uníssono “Ah bom!”.

            O ecumenismo e a diversidade religiosa não tiveram efeito apenas sobre aquilo que se passava na cabeça do povo, mas também resultados bem materiais. Uma parte dos batistas tinha ligações com a Suécia, os luteranos “riograndenses” com a Alemanha, e seus pastores, às vezes, viajavam para lá, trazendo alguma inovação tecnológica para a agricultura ou para a pecuária. Os luteranos “missurianos”, pelo contrário, voltavam sua atenção para os Estados Unidos, e seus pastores, de vez em quando, iam para este país. Foi numa viagem dessas que o pastor Albert Lehenbauer trouxe a soja para a região. Infelizmente, o Brasil não sabe que deve a Guarani e ao pastor “missuriano” Lehenbauer os milhões de dólares que, anualmente, entram no país com a exportação desse produto.

            Samuel Gertz nasceu e se criou nessa colônia. Freqüentou a escola por apenas quatro anos, mas sua caligrafia era primorosa – os descendentes, apesar dos títulos acadêmicos, nunca conseguiram igualá-la. Também sabia ler e fazer contas para seu gasto, mas nunca soube da existência do grande filósofo francês Descartes. O vizinho de seu pai, o Andreas Modes, havia criado um menino negro, que tinha o prenome do filósofo. Foi seu melhor companheiro e amigo na infância e na juventude. Quando adulto, foi fazer a vida em Machado – um lugar para o qual migraram muitos jovens da segunda geração dos imigrantes de Guarani – e quando lá lhe nasceu um filho, deu-lhe o prenome de Descartes, não em homenagem ao filósofo francês, mas em homenagem ao grande amigo negro. Em Machado tinha muito contato com “seu” Dácio Busanello, subprefeito, pai da “Kika” (Beatriz), prefeita de (Novo) Machado de 1997 a 2000. Principalmente quando passavam uma manhã ou uma tarde fazendo vassouras, ao voltar para casa, invariavelmente, lamentava o atraso de Machado. “Seu” Dácio lhe contava que tinha de ir até Tucunduva para assistir à missa, e certa vez até capotara com sua Rural, numa ida à missa. Para ele, uma cidade que se prezasse (pensava que Machado era uma cidade) deveria ter igrejas de todas as religiões. Sem nunca ter lido Natã, o sábio, de Lessing, e dentro de suas escassas economias, colocou de lado uma quantia razoável para contribuir com os católicos quando fossem construir uma igreja. Morreu, há 10 anos, “seu” Dácio morreu pouco depois. Machado ainda não é uma “cidade” que se presa, pois ainda não tem igreja católica.

            Santa Rosa é o maior centro urbano da região em que vive esse povo. Merece todo apoio a campanha desencadeada há pouco para transformar essa cidade na capital do Rio Grande do Sul. Ela tem tudo para tornar-se a Viena do século XXI, com direito a uma nova versão do austro-marxismo e tudo mais.

            Com Santa Rosa como capital, a República seria efetivamente re-publicanizada. Na sua fundação, o estabelecimento das mais diversas igrejas era não só tolerado, mas até incentivado com a concessão de terrenos – assim que a cidade tinha, muito antes do surgimento das várias confissões estabelecidas nos últimos anos, bem mais de vinte igrejas diferentes. Mas se o executivo, o legislativo e o judiciário gaúchos forem estabelecer-se em torno da praça central, a Praça da Bandeira, teremos, finalmente, o retorno ao regime dos três poderes, pois ao redor dessa praça só havia espaço para a Prefeitura – para o poder temporal. Ao poder espiritual foram garantidos outros espaços – mas longe da praça central.

            Claro, se minha tese é correta, possivelmente haverá em Santa Rosa mais “neonazistas” e mais esquerdistas às vezes algo carentes de bom senso do que em Tupandi. Os primeiros, via de regra, temem a luz do dia e, por isso, é difícil falar sobre eles. Quanto aos outros, lembro que o moço – na época vice-presidente da UNE – que em julho de 2000 jogou ovos no então ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardenberg, na abertura da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, é santa-rosense. Isso, porém, não muda nada no fato de que a massa da população é, sensatamente, sem ter consciência disso, de centro direita a centro esquerda – todos hão de concordar que os meses em que o espírito de Santa Rosa pairou sobre o Palácio Piratini se caracterizaram por uma governação conciliatória e muito satisfatoriamente racional.

            Mas não posso encerrar sem voltar a Tupandi. Os metropolitanos, a essa altura, com certeza estarão pensando mal do seu povo. Para esses iluminados, é necessário informar que entre os não mais de 30 nomes de mulheres que neste estado, até agora, exerceram o cargo de prefeita está o de Cecília Junges – chefe do executivo em Tupandi antes que a lei estabelecesse quotas de mulheres nas chapas eleitorais. Em 1992 o município elegeu uma vereadora, em 1996 quatro. E quem for a uma festa no lugar verá que na “furiosa” banda municipal de 8 membros tocam 3 negros.

            Talvez caiba lembrar – para encerrar definitivamente – que a primeira prefeita da história do Rio Grande do Sul tem um sobrenome alemão – a segunda também. No período 1997-2000, das doze prefeitas do estado, seis tinham sobrenome alemão, das atuais nove, cinco têm sobrenome alemão. Da lista de vereadoras gaúchas eleitas em 1992 e 1996 – compilada por Céli Pinto e seu grupo de pesquisa – 57% tinham sobrenomes alemães e/ou italianos, na primeira data, e 61% na segunda (desta vez, com uma certa vantagem numérica das “gringas” sobre as “alemoas”, quando na data anterior houvera um virtual empate entre ambas). Santa Maria do Herval, um município de cunho rural, ao norte de Porto Alegre, lá no alto do Morro Reuter, em 2003, foi declarado, pela ONU, município de melhor distribuição de renda do Brasil; nas eleições de 2002 – apesar de que o jornalista de Zero Hora (20/10/2002, p. 14) não encontrasse nenhum poste lambuzado com propaganda eleitoral – tivera o menor índice de abstenção de todo o estado. Isso mostra que a “colônia”, também no campo político, não está tão mal quanto muita gente imagina.

 



[1] Texto originalmente publicado em Zero Hora, Porto Alegre, Caderno “Cultura”, de 24 de julho de 2004, p. 10-11.