Quem conhece meus estudos sobre História do Brasil sabe que tenho um livrinho intitulado O perigo alemão. Infelizmente, sou obrigado a retornar ao assunto, pois esse fantasma está de volta.

Uma das minhas frustrações é não ter estudado Direito. No início da década de 1970, morávamos numa modesta casa de estudantes, e eu ficava fascinado com os relatos de meu colega de ginásio e colegial Cristov Becker que contava coisas que tinha ouvido na aula de um grande mestre da minha geração, o professor José Antônio Giusti Tavares, sobre o esforço do jurista Hans Kelsen para resolver o problema do “estado de exceção” – isto é, como evitar que o acionamento do artigo constitucional que o prevê dependa da vontade subjetiva do governante de plantão? [Sem ter notícias a seu respeito, escrevi essa frase uma semana antes de o professor Tavares falecer - seja ela, agora, entendida como uma homenagem a essa grande figura intelectual e humana. Como estes colchetes abriram um excurso dentro do texto desta nota, aproveito para ampliá-lo um pouco. A morte do professor Tavares, mais um vez, evidenciou que nós professores ocupamos um espaço mínimo na memória de nossos ex-alunos. Como estivesse fora de Porto Alegre quando ele faleceu, fui à missa de sétimo dia - posso estar enganado, mas não vi nenhum ex-aluno presente. Será que fui o único que não pôde ir ao velório? O episódio trouxe à minha lembrança o falecimento de meu professor de Física, no colegial, Julius Sporket. Foi com ele que aprendi que é a "morte térmica do universo", e foi graças a esse aprendzado que, anos mais tarde, entendi, perfeitamente, que pretendia dizer Max Weber quando se referia à "morte térmica" da sociedade. Sporket foi professor de muitos físicos que estão por aí. Certa vez, o professor Gerhard Jacob, ex-reitor da UFRGS, falecido, disse que, na segunda semana em suas aulas de Física na universidade, muitas vezes, tinha a impressão que determinado estudante tinha sido aluno de Sporket - quando perguntava a respeito, em geral, a suspeita se confirmava. Conta-se que o irmão Norberto Rauch, ex-reitor, falecido, da PUCRS encarregou Sporket de montar a parte de Física no Museu de Ciência e Tecnologia da universidade. Apesar de não ter sido católico, o Instituto de Física da PUCRS encomendou uma missa de sétimo dia, quando faleceu - além de dois ou três colegas da PUCRS, da viúva e dos dois filhos, o único ex-aluno presente fui eu. Sic transit gloria magistrorum!].

Concluído o excurso, voltemos ao Direito. Nunca cheguei a ler Kelsen. Muitos anos depois, traduzi um artigo de Karl Acham no qual mostra como ele apanhou tanto de nazistas quanto de comunistas. Minha admiração foi renovada. Quanto a outros clássicos do Direito, traduzi, na década de 1980, a Grundlegung der Soziologie des Rechts de Eugen Ehrlich. Fiquei frustrado, porque os editores houveram por bem impor o título Fundamentos da sociologia do Direito, para atrair compradores-estudantes, que imaginariam tratar-se de um manual (quando a primeira palavra deveria ser “Fundamentação”). Mesmo que o livro fosse citado em acórdãos do STF (incluindo meu nome, como tradutor), meu envolvimento com o Direito cessou por aí.

Algumas semanas atrás, eu estava escrevendo um artigo, e, pesquisando, me deparei com um texto intitulado “Nós e a Alemanha”. Ali, fiquei sabendo que a tradição jurídica alemã influenciou o direito no Brasil já no período colonial, mas, sobretudo, desde a Independência. Não interessa resumir o texto, mas entrei em estado de alerta com o parágrafo final, que diz o seguinte:

O alemão tornou-se, assim, por meio de um engodo e de uma mistificação, a língua do Direito Constitucional. Ou melhor: a língua de um grupo ou setor de operadores do Direito que pretendem tornar-se “o” Direito Constitucional. A citação de autores alemães, e de certos autores em especial, adquire o peso que, antigamente, dava-se, na escolástica, às citações do Doutor Angélico ou do Estagirita: tudo soa profundamente jurídico e erudito quando falado em alemão. E ainda: cuida-se de movimento capitaneado por quem de fato exerce grande poder político, condutores da jurisprudência e da doutrina nacionais. É um movimento que, na realidade, presta um desserviço ao pensamento e às letras jurídicas. E que deve ser desmascarado sempre e onde quer que seja possível.

A partir desse alerta patriótico, comecei a observar aquilo que está, de fato, acontecendo, neste país. Lembrei de uma entrevista do aposentado ministro do STF Joaquim Barbosa, em que ele dizia não conhecer o Kappes Berg (que fica lá em Salvador, que não é da Bahia) nem o Spiegel Berg (que também atende por Morro do Espelho) – por onde passaram muitos futuros juristas brasileiros, incluindo o desembargador aposentado gaúcho “Fritz” –, mas que gosta muito do Prenzlauer Berg. Talvez influenciado por isso, tenha aplicado aos "mensaleiros" a teoria do “domínio do fato”, conceito buscado no jurista alemão Claus Roxin. Ainda nas minhas pesquisas, descobri que o ministro do STF Gilmar Mendes, doutorado em Münster, publicou um livro premiado juntamente com dois juristas gaúchos, um dos quais nasceu e se criou no Hamburger Berg, o outro no Spitz Berg, lugar que também já atendeu por Santo Ângelo – mas não o Santo Ângelo das Missões, e sim o da Depressão Central, que foi administrado por muito tempo pelo barão von Kahlden. Neste final de semana, leio, num grande jornal de Porto Alegre, que uma enquete entre magistrados brasileiros perguntou, entre outras coisas, quais são as “três obras que servem de referência para a fundamentação das [suas] decisões”. Entre os cinco textos mais lembrados, o único brasileiro é do citado jurista do Hamburger Berg (Zero Hora, 16-17/2/2019, p. 6).

Entrei em pânico. Vi que aquele artigo alertando para o “perigo jurídico alemão” tem fundamento. Inspirado pela teoria do “domínio do fato”, concluí que Angela Merkel abriu mão de treinar soldados da Bundeswehr e da Luftwaffe para invadir o Brasil, como, supostamente, tinham feito, no passado, Bismarck e Hitler, e está concentrando todo seu esforço nos juristas – eu, que já escrevi, em várias oportunidades, que a invasão do Brasil pela Alemanha perdeu sua plausibilidade, depois da Segunda Guerra Mundial.

Se está na moda divulgar fake news, por que não posso postar a minha? [18/2/2019]