Em agosto de 2010, apareceram pichações com símbolos nazistas em placas de trânsito numa rodovia que atravessa o município de Teutônia (RS). Autoridades policiais desmentiram, de forma categórica, que elas tivessem sido feitas por “neonazistas” locais. Mesmo assim, o então procurador da República em Lajeado – a cuja jurisdição o citado município pertence – houve por bem investigar o caso. Em março de 2012, apresentou um relatório a respeito. Fiz a crítica dessa ação do procurador na nota “Que Deus proteja este nosso Rio Grande de virar uma nova Bósnia!” [clica aqui para lê-la]. Mais tarde, publiquei um livro intitulado O neonazismo no Rio Grande do Sul, no qual renovei minhas críticas (p. 112-125).

 

            Apesar de constar 2012 como data de publicação, o livro foi colocado no mercado em fevereiro de 2013. Enviei-o, imediatamente, a Fabíola Dörr Caloy, Procuradora-Chefe do MPF-RS, acompanhado de uma longa carta, na qual, mais uma vez, expressei minha estranheza e minha preocupação com a ação do procurador (o qual havia deixado sua função em Lajeado em 31 de julho de 2012). Além disso, requeri acesso ao processo que ele instaurara (inquérito civil público n. 1.29.014.000164/2010-94).

            Com data de 12 de março de 2013, recebi correspondência assinada pelo procurador da República Enrico Rodrigues de Freitas informando que meu pedido de vista do referido processo estava cadastrado no sistema único sob n. PR-RS-00003943/2013, mas que fora determinado “o arquivamento do respectivo expediente e encaminhado, para fins de homologação, à 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, em Brasília-DF”. Além disso, a correspondência dizia que “tão logo os autos retornem a esta Procuradoria poderão ser consultados”.

            Em maio de 2013, enviei e-mail ao MPF em Lajeado perguntando se o processo já tinha voltado a sua origem. A resposta, datada de 16 daquele mês, foi: “comunico que, com o retorno dos autos, será realizado contato para fins de consulta ao ICP”. Como quase um ano depois da promessa de acesso, nada acontecera, enviei, a 17 de fevereiro de 2014, correspondência a Rodrigo Janot Monteiro de Barros, Procurador-Geral da República, perguntando sobre as perspectivas de retorno do processo a Lajeado, para possibilitar sua leitura.

            Com data de 21 de março de 2014, recebi e-mail da 1ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República, nos seguintes termos: “procedimento administrativo 1.29.014.000164/2010-94 foi julgado na 248 sessão ordinária, de 19/3/2014. Assim que for publicada a ata da reunião, lhe informamos o endereço eletrônico para consulta da decisão”. Depois de esperar por 45 dias pela ata, mandei novo e-mail, quando então o texto foi disponibilizado. Ele diz o seguinte:

“1. A suposta disseminação de símbolos nazistas, no Município de Teutônia/RS, evidencia a ocorrência, em tese, de crime resultante de preconceito de raça, o qual se encontra tipificado no art. 20, § 1º, da Lei nº 7.716/1989. 2. Dessa forma, o arquivamento do feito, em razão de as investigações policiais terem concluído pela inexistência de indícios de autoria e materialidade do delito, é matéria que se insere mais adequadamente na esfera de atribuições da 2ª CCR. 3. A notícia de suposta divulgação de ideais neonazistas, através de sítio eletrônico, também veicula tema de natureza criminal. 4. Com o desmembramento dos autos, a matéria cível, referente ao efetivo cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial por parte das instituições de ensino da região em comento, foi conduzida à apreciação do ICP nº 1.29.014.000049/2012-81, restando, assim, prejudicado o prosseguimento do feito no âmbito desta 1ª CCR. 5. Pela remessa dos autos à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão. Deliberação: O colegiado, à unanimidade, deliberou pela remessa dos autos à PGR/2A. CAM – 2A. CAMARA DE COORDENACAO E REVISAO DO MPF para análise”.

            Não sou jurista, mas sei que se ensina nas Faculdades de Direito que normas jurídicas constituem bom-senso codificado. E o bom-senso estranha que tenha havido “desmembramento” do processo. A motivação para sua instauração é clara (está no relatório!): o então procurador da República em Lajeado tomou conhecimento, através de um noticiário de televisão, de pichações com símbolos nazistas em Teutônia. Resolveu investigar, e, para isso, recorreu a uma técnica pericial em Antropologia – uma doutora na disciplina, doutora pela melhor universidade do Brasil, a UFRGS, a minha UFRGS –, que recomendou uma série ações “pedagógicas”, “que possam bem esclarecer ao conjunto dos concidadãos de Teutônia sobre o valor da convivência social entre diferentes grupos sociais” (p. 2 do relatório).

            Essa passagem do parecer da antropóloga é mais que suficiente para despertar a curiosidade sobre os termos integrais de seu diagnóstico. Como ela chegou à conclusão de que oconjunto dos concidadãos de Teutônia” – isto é: todos! – mereceria uma lição de civilidade, de “desneonazificação”?

            Independente disso, o procurador resolveu também solicitar à Polícia Federal que investigasse o site www.nacional-socialismo.com. Como esse site é antigo, e não tinha nada a ver com Teutônia, além de, com certeza, sua existência ter sido de conhecimento da Polícia Federal e do MPF, sua inclusão no processo derivou, exclusivamente, da desconfiança de que os supostos “neonazistas” da região o haviam utilizado para praticar os supostos atos criminosos de agosto de 2010. O relatório é claro, ao afirmar que o caso foi “acostado”, porque “teria relação com a matéria dos autos” (p. 1 do relatório). Portanto, a inclusão desse tema derivou, de forma direta, da pressuposição do procurador e da antropóloga de que o "conjunto dos concidadãos de Teutônia” havia praticado atos “neonazistas”.

            Também a investigação sobre a aplicação do Estatuto da Igualdade Racial está diretamente relacionada com a motivação inicial para a instauração do processo. A decisão sobre a inclusão dessa questão surgiu numa “memorável” reunião pública patrocinada pelo procurador, na qual ele autorizou a presença de representantes declarados de várias “etnias”, para “discutir medidas que viabilizem a conscientização de alunos e frequentadores das escolas sobre as diversidades culturais e raciais” que os “alemãos” de Teutônia, supostamente, desconheceriam. E foi nessa “memorável” reunião que surgiu a “proposta de se verificar a efetiva aplicação do Estatuto da Igualdade Racial” (p. 2 do relatório). Ou seja, da pressuposição do procurador – no mínimo, subentendida – de que Teutônia e todo o vale do Alto Taquari estavam generalizadamente “neonazificados” derivaram tanto a ação inicial, quanto a inclusão do site, no processo, mas também a inclusão do Estatuto da Igualdade Racial.

            Portanto, admitido que o procurador esteve equivocado em sua pressuposição, ao instaurar o processo – fato que, mais tarde, motivou o pedido de arquivamento –, a lógica do bom senso pergunta por que essa constatação não leva, automaticamente, ao arquivamento in totum? Se a motivação inicial foi admitida como equivocada, por que não devem ser admitidas como automaticamente equivocadas todas as pressuposições derivadas?

            Entre parênteses, permito-me uma observação a respeito da inclusão da questão sobre a aplicação do Estatuto da Igualdade Racial. O mesmo fora promulgado no dia 20 de julho de 2010, portanto exatamente 30 dias antes da ocorrência das pichações supostamente “neonazistas”. Em minha citada carta à procuradora-chefe do MPF-RS, perguntei se o então procurador da República em Lajeado poderia citar um único (!) município brasileiro no qual, naquele momento, o Estatuto estava em aplicação. Até este momento, não obtive resposta.

            Mais um parêntese: não tenho dúvida de que, como de qualquer autoridade, também de um procurador da República a sociedade espera que contribua para “desconstruir”, para minimizar eventuais conflitos de caráter racial, étnico, cultural, religioso. É difícil imaginar como isso possa ter acontecido numa reunião convocada para discutir formas de combater o suposto “neonazismo” entre o "conjunto dos concidadãos ['alemãos'] de Teutônia" na presença de representantes declarados de outras “etnias”. No relatório do procurador, também está escrito que "foi solicitado à analista pericial em Antropologia da Procuradoria Regional da 4º Região a realização de estudo sobre o tema, a fim de identificar medidas adequadas à prevenção/repressão dos fatos". Se, posteriormente, o próprio MPF resolveu arquivar o caso por falta de confirmação da materialidade dos supostos delitos, "dos fatos", me pergunto se aqui não ocorreram arranhões ao Estado Democrático de Direito, pois como uma autoridade brada uma ameaça de repressão (e, inclusive, desencadeia medidas concretas), sem que, antes, a culpa do(s) cidadão(s) tenha sido comprovada, de forma irrefutável? E note-se que não se trata da situação emergencial de um policial, que, em meio a um conflito de rua, bate, para só depois descobrir que bateu de forma equivocada!

             Finalmente, um  terceiro parêntese: a instauração do procedimento foi trombeteada pela imprensa (Rádio Independente, de Lajeado, 11/9/2010; Correio do Povo, Porto Alegre, 13/9/2010), fato que, com certeza, ajudou a reforçar os preconceitos históricos contra o povo de Teutônia, em vigor no senso-comum. Procurei em vão por uma notícia na imprensa, na mesma dimensão e com o mesmo destaque, por ocasião do arquivamento, que, afinal, representou o reconhecimento, por parte do MPF, de que a instauração do procedimento  fora um equívoco. Não teria sido mais prudente instaurar o procedimento sem qualquer alarde, e caso os indícios pudessem ser confirmados, de forma inequívoca, então, sim, se poderia dar publicidade às eventuais maldades praticadas pelo povo teutoniense? Caso contrário, isto é, se as investigações indicassem para a "inexistência de indícios de autoria e materialidade do delito" (como aconteceu), o procedimento seria encerrado na surdina, sem o perigo de ter contribuído para potencializar preconceitos! Aliás, é muito estranho que o procurador tenha instaurado um procedimento administrativo em setembro de 2010, transformando-o em inquérito civil público a 1º de março de 2011 - quando todo mundo sabia, há muito tempo, que não havia "neonazistas" em Teutônia, e só ele insistiu em continuar a procurá-los e a persegui-los!

            Voltando ao processo – com a decisão da 1ª Câmara de remetê-lo à 2ª Câmara, meu acesso a ele foi, mais uma vez, adiado às calendas. Considerando que no relatório do então procurador da República em Lajeado há indícios que justificam o direito dos cidadãos deste país em saber que, de fato, aconteceu não só em Teutônia, mas no vale do Alto Taquari como um todo, e submeter a uma avaliação crítica os atos ali praticados por um de seus servidores públicos de luxo, faço as seguintes perguntas públicas ao MPF: Quando terei acesso ao referido processo? Na era da digitalização – até por questões de segurança – não foi feita uma cópia que tivesse permanecido em Lajeado? O MPF em Lajeado não sabia a que Câmara competia a apreciação do pedido de arquivamento do processo?

            Mesmo que o processo ainda precise passar pelas 3ª, 4ª, 5ª, 6ª Câmaras da Procuradoria-Geral da República, espero viver o suficiente para, finalmente, ter acesso aos documentos, pois é irresistível minha curiosidade para ler o parecer exarado pela técnica pericial em Antropologia sobre o "conjunto dos concidadãos de Teutônia”, para ver que qualidades ela atribuiu aos “alemãos” locais, pois suas sugestões para civilizá-los, “desneonazificá-los”, transcritas na p. 2 do relatório do procurador, oscilam entre o folclórico e o hilariante. Hilariante é, por exemplo, a sugestão de incluir os museus locais (plural!) no processo para instruir os teutonienses "sobre o valor da convivência social entre diferentes grupos sociais"  – acontece que a salinha que, dentro do Centro Administrativo do município, se chama “Museu Henrique Uebel” abriga a geringonça pela qual esse cidadão era conhecido na região, com sete instrumentos musicais que ele tocava simultaneamente. Este é o museu (singular!) de Teutônia. Por tudo isso, tenho certeza de que não só eu estou muito curioso em saber em que medida foram fatos que motivaram a instauração do processo em pauta, e em que medida foi o imaginário do procurador e da técnica pericial em Antropologia!

            Com a palavra o MPF! [16/6/2014]