Em 2014, comemoram-se os 150 anos de nascimento de Max Weber - o maior cientista social de todos os tempos. Entre os variados aspectos de seu pensamento, destacam-se as famosas "antinomias". Significa que Weber, muitas vezes, leva seus leitores a seguir um argumento numa determinada direção, expondo pontos "positivos"/"negativos" de um fenômeno. No auge de sua argumentação, porém, começa a mostrar que tudo tem um “outro lado”, e que o mesmo fenômeno também pode ser visto em sentido oposto. Para muitos, isso é sinal de insegurança, de indefinição. Para mim, trata-se, porém, de um poderoso antídoto contra todo tipo de ortodoxia que defende de forma tão intransigente aquilo que considera “verdadeiro” que se sente autorizada a impor sua “verdade” aos outros manu militari, se necessário.
Nos anos 1960, Hannah Arendt indagou Karl Jaspers a respeito de sua convivência com Weber, e ele, entre outras coisas, respondeu que a uma pergunta sua sobre o sentido da ciência [social] que praticava o sociólogo teria respondido que ela serve “para ver quanto se consegue aguentar”. Unifico esses dois elementos, as antinomias e a tentativa para ver quanto aguento, na minha avaliação da imprensa. Por um lado, me apavoram ameaças, embutidas ou explícitas, contidas em “marcos regulatórios” da mídia, por outro, me indigna o descalabro decorrente da sua frequente irresponsabilidade absoluta. Uma solução é difícil. Mas, no Estado Democrático de Direito, instâncias como o Ministério Público - uma instituição cara [no sentido amplo da palavra] para a sociedade - deveria zelar para levar ao Poder Judiciário casos evidentes de irresponsabilidades cometidas pela imprensa, não necessariamente para punir jornalistas irresponsáveis, mas para - digamos - garantir a publicação de contrapontos.
Tomo o exemplo da recente publicação da reportagem “Por que a intolerância cresce no Rio Grande do Sul?”, em Zero Hora online, em 2 de maio de 2014 [http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/pagina/intolerancia-no-rs.html]. Na verdade, a reportagem aborda quatro aspectos da intolerância, mas excluo dois deles de minha apreciação porque me falta um conhecimento especializado a respeito dos temas “populações indígenas” e “homofobia”.
Sobre os outros dois, intimamente relacionados - racismo e “neonazismo” -, considero-me, porém, autorizado a palpitar, ao menos em relação a algumas passagens da matéria. Para explicar o suposto (ou efetivo) crescimento da intolerância denominada “neonazismo”, o texto jornalístico transcreve a conhecida tese do delegado Paulo César Jardim, nos seguintes termos: “a composição étnica do Rio Grande do Sul, marcada pela imigração europeia, segundo o policial, criaria um ambiente mais favorável para a identificação com a ideologia marcada pela ilusão de superioridade da chamada raça ariana”. Em relação ao racismo, um doutor em Sociologia, professor em uma grande universidade gaúcha, sentencia que “o projeto de desenvolvimento baseado na vinda do imigrante europeu, em vez da integração do negro, contribuiu para a formação de estereótipos”. Mesmo que no caso do doutor em Sociologia a afirmação não seja categórica no sentido de culpar, de forma explícita, “alemães”, “italianos” e “poloneses” gaúchos pelas manifestações racistas (como o fez, reiteradas vezes, o delegado, ao referir-se a atos “neonazistas”), os leitores, com certeza, terão feito essa mesma “leitura” [a "leitura" que fizeram das afirmações do delegado está escancarada nos comentários postados no site]. "Oh si tacuissetis...".
Em se tratando de um tema tão polêmico e grave, um jornalista responsável não pode lançar esse tipo de afirmações ou insinuações a esmo para o público. Cabe-lhe um papel crítico [do grego krínein, separar, distinguir o joio do trigo]. Acontece que, no presente caso, a clara impressão que terão tido os leitores, ao ler a matéria, de que os “imigrantes” são os responsáveis por racismo e “neonazismo” neste estado bate de frente com, no mínimo, indícios em sentido contrário na própria matéria assinada pelo jornalista. Remeto a apenas dois casos.
Ao relatar a agressão racista a Luiz Carlos de Oliveira, em Santa Cruz do Sul, o jornalista informa que “de origem humilde, o microempresário foi criado por uma família alemã do município porque seus pais não tinham condições de sustentar os três filhos”; e que “conhecia preconceitos só de ‘ouvir falar’”. Não há dúvida de que a massa dos leitores terá murmurado: “Só pode, em Santa Cruz não poderia ser diferente!”. E é aí que a elaboração jornalística crítica (o krínein, o distinguir, o separar o joio do trigo) deveria ter entrado em ação, pois se o agredido foi criado por uma família alemã e conhecia preconceitos só “de ouvir falar” Santa Cruz não deve ser um antro satânico de racismo generalizado, como pressupõe o senso comum. Uma atitude jornalística crítica deveria ter atentado para esse detalhe, chamando a atenção do leitor para o fato, e feito uma investigação sobre o agressor, apresentado como um “jogador de futebol” bêbado - este jogador possui sobrenome alemão? É habitante tradicional do município? Ou é alguém que veio de fora, e emporcalhou a hospitalidade do povo de Santa Cruz?
Estatísticas, dados “duros” costumam ser importantes para reforçar argumentos. E o jornalista apresenta um mapa do Rio Grande do Sul com dados, com índices de ações que denotam preconceitos [veja abaixo, no final deste texto]. A aparente prova, no entanto, mais uma vez, mostra que faltou capacidade de krínein ao jornalista. O mapa mostra a distribuição de ocorrências de caráter preconceituoso pelo território gaúcho. Está amplamente divulgado - e desconheço contestação séria - que o maior número de registros desse tipo de atos ocorre na região metropolitana do Rio Grande do Sul. Mas a região metropolitana - mesmo incluindo algumas áreas de imigração - não é uma típica área “colonial” ou “imigrantista” [Que ainda há de "alemão" em São Leopoldo, por exemplo? Tente o ínclito jornalista comprar uma aspirina em uma farmácia leopoldense falando alemão!]. Além da região metropolitana, algo semelhante vale para o litoral, para onde, em alguns meses do ano, migra justamente grande parte da população metropolitana. Se excluirmos essas duas áreas, como fiz no mapa abaixo, através do círculo, restam nítidas a região tradicional, “tipicamente” brasileira ou gaúcha do estado, a "metade sul", e a região “colonial” ou “imigrantista”. Se contarmos os "balões" registrados nas duas áreas, veremos que na primeira são 15, na segunda 14. Não quero cometer um erro estatístico, porque o próprio texto é pouco claro quando refere que cada "balão" corresponde à incidência sobre 100.000 habitantes. Mas arrisco dizer que essa referência é específica aos municípios com ocorrências - e não ao conjunto do estado. Neste caso, deveria levar-se em conta, ainda, o fato de que a região “colonial” possui 3.500.000 habitantes, contra apenas 2.500.000 da Campanha, com que a densidade relativa de ocorrências preconceituosas na região “colonial” diminuiria ainda mais (em tempo: o fato de a região metropolitana abrigar 4.000.000 de habitantes indica que a densidade desse tipo de atos não extrapola em dimensões astronômicas a “normalidade” do conjunto do estado). Caso os dados do mapa sejam consistentes, qualquer pessoa que tenha ao menos dois neurônios em funcionamento está obrigada, por um imperativo de lógica, a reconhecer que ele não prova nenhum nível de malvadeza maior entre a população "colonial", na comparação com o conjunto da população gaúcha, que, pelo contrário, há ao menos indícios de uma tendência inversa.
Em resumo: tanto o episódio racista em Santa Cruz quanto o mapa, ao contrário daquilo que o próprio jornalista, aparentemente, imaginou, no mínimo, NÃO confirmam as afirmações do doutor-delegado e as insinuações do doutor-catedrático, antes indicam que esses senhores se excederam. Um jornalista com QI suficiente para krínein as matérias que ele mesmo elabora e assina deveria alertar seus leitores a respeito, ainda que a liberdade de imprensa, obviamente, não o impeça de transcrever manifestações irresponsáveis de autoridades e de intelectuais, desde que as explicite como opiniões pessoais dos respectivos autores, distanciando-se delas.
E que fazer quando a capacidade de krínein do jornalista falha, como parece ter ocorrido no presente caso? Em minha opinião, diante de uma situação dessas, caberia ao caro [no sentido amplo da palavra] Ministério Público entrar em ação, e empenhar-se, junto ao Poder Judiciário (“ainda há juízes em Porto Alegre”), para que, quando determinadas parcelas da população são agredidas, difamadas sem base factual (por causa do sobrenome que têm), os órgãos de imprensa sejam, no mínimo, obrigados a divulgar, na mesma dimensão, um desmentido.
Ficaria muito grato se os juristas do MP-RS, dia desses, me explicassem por que afirmar em público que "alemães", "italianos" e "poloneses" são responsáveis pela existência de "neonazismo" no Rio Grande do Sul - sem apresentar provas! - não significa "induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou procedência nacional" (Art. 20 da Lei 7.716). Ou esse ato é enquadrável no citado artigo, mas alguém, por razões abscônditas, está fazendo "corpo mole" - e, ao contrário do preceito constitucional, nem todos são tratados iguais perante a lei?
É estarrecedor constatar que integrantes do MP-RS já acionaram motoristas que atropelaram galinhas (!), galinhas mesmo, gallinae domesticae, mas ficam totalmente inertes diante de agressões brutais à dignidade de um muito significativo (!) percentual de SERES HUMANOS (homines sapientes) deste estado. Aparentemente, falta também aos senhores do MP-RS capacidade de krínein para ver que se trata de manifestações exatissimamente tão fascistas quanto as dos racistas e "neonazistas", que essa gente diz combater. E quando essas manifestações partem de agentes de Estado, estamos realmente no limite daquilo que o Estado Democrático de Direito pode tolerar. Ou o MP-RS possui dados que efetivamente incriminam as populações difamadas? Neste caso, que lhes dê ampla divulgação, para que possam ser submetidos a um crivo crítico público, pois nós temos casos - exatamente no campo em discussão! - em que profissionais que ostentam vistosos títulos acadêmicos obtidos nas melhores universidades deste país publicaram diagnósticos e emitiram pareceres que clamam aos céus pelo seu caráter preconceituoso e equivocado. Não tenho dúvida alguma de que dentro de pouco tempo um "cientista social" apresentará uma tese de doutorado em uma das nossas universidades top afirmando que o citado episódio racista em Santa Cruz constitui prova definitiva de que os "alemães" gaúchos são animais hiper-racistas - e a tese será aprovada summa cum laude ! [7/5/2014]
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