Nas últimas eleições municipais, foi eleita a primeira mulher negra para prefeita, no Rio Grande do Sul - uma das, aparentemente, apenas três em todo (!) o Brasil. Isso ocorreu em Dois Irmãos, a antiga Baumschneis (a Picada dos Baum), um município típico de colonização alemã, que é apresentado como tendo apenas 1,5% de sua população classificada como negra. A negra Tânia Terezinha da Silva venceu o "alemão" Gerson Miguel Schwengber. Naquilo que tange à eleição dos vereadores - composição que, em tese, reflete o posicionamento político "médio" da população -, foram escolhidos 3 do PT, 2 do PDT, 2 do PMDB, 1 do PP e 1 do PTB, denotando um respeitável ecumenismo.
Em sua edição de 16 de dezembro de 2012, a revista dominical encartada em um grande jornal de Porto Alegre apresentou uma matéria de capa sobre o caso, com 6 páginas. Como se sabe, a população de origem alemã no Rio Grande do Sul costuma ser apresentada como animalescamente racista, como “antípoda” sanguinária dos negros. E o texto da reportagem não deixa de insistir nessa direção. A capa chama a atenção para a “prefeita na raça”, que teria chegado ao “poder em terra de alemães”. No texto, encontram-se, no mínimo, os seguintes qualificativos negativos em relação à população local: “terra carregada de sotaque e costumes alemães”, “povo reservado”, “povo em geral desconfiado e reticente”, “cidade conservadora”. Isso teria gerado - em princípio - a total incompatibilidade entre a população com características tão negativas e a candidata negra: “Surgiu na campanha eleitoral a definição que abriga, na mesma frase, a forasteira negra e a cidade de colonização alemã, a popularidade de uma dobrando a desconfiança de outra, a acolhida não deixa de evidenciar a maior diferença entre ambas”.
Se essa incompatibilidade realmente existisse, a eleição da negra exigiria uma explicação. E uma explicação possível seria a de que ali ocorreu um “aborto da natureza” ou um “voto cacareco” (esta última expressão se refere ao fato de que, numa forma de protesto, em 1959, um rinoceronte do zoológico de São Paulo, o “Cacareco”, recebeu cerca de 100.000 votos, para vereador - na época, se escrevia o nome do votado na cédula). Os próprios dados da reportagem, porém, não admitem essa explicação, pois a prefeita eleita foi, desde 1996 (!), vereadora, tendo sido campeã de votos em 2008, e foi lançada candidata em 2012 após uma enquete entre a população. Portanto, sua eleição não refletiu um “aborto da natureza” nem um “voto cacareco”. A explicação que, então, sobra é a de que Tânia Terezinha da Silva é uma semideusa, que conseguiu dobrar o suposto racismo indomável que a população lhe anteopunha: “simpática, espaçosa e faceira que conquistou o eleitorado justamente por assumir sem ressalvas a alegria contagiante”.
Essa forma de pensar e de se manifestar, em público, sobre a última eleição em Dois Irmãos apresenta, no entanto, alguns senões - que, aparentemente, passaram de todo despercebidos à inteligência da autora da reportagem. Ninguém pode ter dúvidas sobre as qualidades da eleita, mas, como se sabe, nos municípios de Cacimbinhas e Cafundó não existe qualquer influência alemã, e o percentual de negros na população é de 27% e 32%, respectivamente. A pergunta que se impõe é por que entre a população negra desses municípios nunca surgiu uma semideusa que pudesse conquistar o poder local? Os negros dali são inferiores aos de Dois Irmãos, já que ali não haveria a suposta intransponível resistência racista dos “alemães”?
Os termos da própria reportagem, porém, evidenciam que a população de origem alemã de Dois Irmãos (e da região), de fato, não se sai tão mal assim - basta ler o texto com atenção! A prefeita eleita nasceu e se criou em Novo Hamburgo, outra “colônia alemã” típica. A mãe de Tânia conta, na reportagem, que moravam na Vila Rosa, onde “eram os únicos negros”, mas “jamais sofreram qualquer distinção na vizinhança”. Mais significativa, porém, é a descrição que a mesma mãe faz do clima, em Dois Irmãos, no dia em que foi anunciada a vitória eleitoral da filha: “Choveu, e aquela gente de idade olhando pro céu, tudo chorando, parecia que estavam agradecendo! Aquela gente chorando e rezando e agradecendo”. Uma gente dessas não pode ser tão bestialogicamente racista como costuma ser apresentada.
Pena que um investimento jornalístico dessa envergadura não tenha aproveitado a oportunidade para dar uma contribuição mínima para desmontar os brutais preconceitos contra a população de origem alemã que se acumularam durante os últimos 180 anos, pelo contrário, deu uma mãozinha para - de forma irresponsável - “plantar” mais preconceitos, na opinião pública. Contra as evidências numéricas das urnas! Uma pena! [20/5/2013]