No “Fantástico” da Globo de domingo, 6 de outubro de 2019, foi apresentada uma “espetacular” matéria sobre nazistas em Ibirubá. Esse caráter espetacular ficou evidenciado pela intensidade das chamadas durante a semana, e pelo fato de ter sido deixada para o final do programa. Descubro agora que está planejado um segundo round sobre esse assunto. Antecipo-me para “furar” essa nova matéria da grande empresa jornalística.
Minha descoberta espetacular se refere a dois aspectos. Em primeiro lugar, recebi a informação “de cocheira”, de um parente, de que o médico Frederico Ernesto Braun efetivamente morreu, em 1964, que sobre isso não há qualquer dúvida. Se os ossos no sarcófago – que teria sofrido duas violações – são dele ou não é outra questão, da mesma forma ninguém pode afirmar que esse cidadão estivesse acima do bem e do mal.
Caso matérias desse tipo não se pautassem pelo sensacionalismo, fato que, obviamente, tende a degenerar em instigação ao ódio étnico-racial contra o povo de Ibirubá (quem coloca a palavra-chave “túneis de Ibirubá” no Google, vê que o assunto foi ventilado até os últimos recantos do Brasil – isso, naturalmente, porque as pessoas imaginam que o lugar é, hoje, um antro satânico, habitado, exclusivamente, por animais nazistas), mas estivessem interessadas em fornecer informações históricas, poderia ter sido aprofundada a história do soldado cuja lápide, num suposto ou efetivo túmulo, foi mostrada (consta que esse assunto será pautado na próxima investida do “Fantástico”). Casos desse tipo realmente existiram. Não se pode esquecer que algo como 80.000 alemães vieram ao Brasil no período entre a Primeira Guerra Mundial e a ascensão dos nazistas ao poder. E essa gente era, quase sem exceção, constituída de “fugitivos sociais” (não políticos!), fuga motivada pela enorme crise econômica e social que a Alemanha viveu na década de 1920. Não precisa de muita imaginação para compreender que uma parte desses indivíduos se entusiasmasse com o suposto ou efetivo reerguimento da Alemanha, sob o nazismo, e que, por isso, não pretendia perder sua cidadania alemã. Neste contexto, houve casos em que pais enviaram seus filhos para cumprir seu dever de cidadãos alemães, isto é, prestar serviço militar. A lápide de Ibirubá diz que Adolf Hermann Erich Krapf nasceu em 7 de julho de 1921, de forma que em 1941 ele tinha 20 anos. Isso significa que, mesmo que a foto dele em uniforme militar mostre as insígnias da SS, ele não deve ter sido um comandante (ou "oficial", como diz uma fonte disponível na internet) com poderes ilimitados para decidir sobre vida e morte de quem quer que seja. Infelizmente, deve ser difícil obter informações sobre o porquê de ter servido neste grupo. Outra coisa que precisaria ser esclarecida, sem sensacionalismo, é se ele e a família moraram no Brasil antes da guerra, se ele era brasileiro, pois como a lápide diz que morreu em Skopin (Rússia), em 19 de março de 1949, existe a possibilidade de que sua família só tenha vindo após a guerra, já que a vinda dos migrantes pós-guerra começou em 1947. (Entrementes, foram publicadas afirmações de que ele morou no Brasil, mas tinha nascido na Alemanha, e que a lápide tem apenas sentido simbólico, pois ele não está enterrado ali, tendo desaparecido na Rússia, após a guerra).
Em relação à suposta presença de nazistas como Bormann em Ibirubá, deve-se recomendar, a pessoas sérias e interessadas, a leitura da dissertação de mestrado e a tese de doutorado de Marcos Eduardo Meinerz (estão na internet), que mostram que, a acreditar nas bobagens correntes, ele "esteve" em muitas cidades por aí. De fato, a então "Alemanha Ocidental", em 1973, reconheceu, oficialmente, sua morte, ao final da Segunda Guerra Mundial, decisão, inclusive, acatada pelo conhecido caçador de nazistas Simon Wiesenthal. Também casas e subterrâneos "nazistas" encontram-se às pampas, neste país. Uma das casas mais famosas é a de Heribert Gasa, em Marechal Cândido Rondon, Paraná, da qual Meinerz trata longamente. Quando os proprietários faleceram, pesquisadores da UNIOESTE vasculharam a "misteriosa" construção, mas não fizeram nenhuma descoberta sensacional[ista] em seu interior. Meinerz também trata de um grande engambelador, até de altas autoridades deste país, que, em torno de 1970, se apresentava como implacável "caçador de nazistas". De fato, era um charlatão. Quanto aos cuidados que pessoas sérias precisam ter com aquilo que foi publicado por autoridades policiais do Rio Grande do Sul, durante a Segunda Guerra Mundial, veja-se aquilo que escrevi na nota "O ET de Ibirubá foi capturado".
Para ilustrar uma situação semelhante à do jovem Adolf Hermann Erich Krapf, publico duas cartas de um rapaz que, em 1939, voltou à Alemanha para prestar serviço militar, e o texto mostra que toda a família estava se preparando para ir. O rapaz em questão morreu na guerra, como aconteceu com outros. Entre as famílias que foram à Alemanha, mesmo não para morar, mas para visitar, e não conseguiram voltar ao Brasil, por causa da guerra, estão algumas que são top of mind como empresas brasileiras.
Depois da guerra, o Brasil enviou uma missão militar à Alemanha para lidar com essas pessoas, para trazê-las de volta ao Brasil. Um integrante dessa missão foi Lyra Tavares, um dos “três porquinhos” que em 1969 assumiram o poder, com a doença de Costa e Silva. Em 1951, ele publicou um livro intitulado Quatro anos na Alemanha ocupada. A professora Méri Frotscher, da UNIOESTE (PR), vem estudando esse assunto. Sabe-se que alguns milhares de alemães que já tinham morado anteriormente no Brasil foram repatriados, além de terem vindo alguns outros que nunca tinham estado aqui. Entre eles, naturalmente, pode ter havido algum nazista convicto. Mas essa imigração do pós-guerra também trouxe para este país elementos que deram contribuição significativa para a ciência e a cultura brasileiras.
Se o interesse da imprensa fosse efetivamente uma divulgação histórica, há muitos assuntos que poderiam ser abordados, com objetividade, sem sensacionalismo. Um exemplo: quando o Brasil declarou guerra à Alemanha, em 1942, confiscou os bens dos “súditos do Eixo”. Isso atingiu não só cidadãos “normais” alemães, italianos e japoneses, mas também judeus com cidadania alemã, e, acentue-se, alguns deles não só perderam (para sempre!) seus bens, mas foram internados em campos de concentração brasileiros. Uma matéria no “Fantástico” sobre esse tema constituiria uma importante informação sobre nossa história, mostrando que, se neste país aconteceram barbaridades, elas não foram praticadas por "alemães".
Outro ponto é a reiteradamente suposta surpresa pelo fato de que havia nazistas no Brasil. Sim, houve algo como 3.000 filiados ao partido por aqui (entre os cerca de 100.000 (!) cidadãos alemães que aqui viviam, isto é, 3%). Aquilo que a imprensa sensacionalista, porém, nunca diz é que: a) a existência do partido no Brasil não foi ilegal, até 1938; b) havia muitas empresas alemãs por aqui, e seus funcionários talvez até dependessem da filiação partidária para garantir seu emprego; c) o governo brasileiro se apresentava como simpatizante do regime alemão, e Getúlio Vargas como grande amigo de Hitler – mesmo depois do início da guerra, alguns generais brasileiros tinham em seus gabinetes mapas nos quais marcavam, com entusiasmo, os avanços do exército alemão sobre seus inimigos. Em relação a este ponto, ocorreu-me uma recente inscrição, numa arma de brinquedo, do famoso dizer alemão “ein Führer, ein Volk, ein Vaterlad” (um guia, um povo, uma pátria). Pois vejam, em um livro de Francisco Campos, o todo poderoso ministro da justiça de Getúlio Vargas, de 1940 (!), intitulado O Estado Nacional, encontramos a afirmação de que o regime brasileiro do Estado Novo (1937-1945) se baseava no princípio do “um chefe, um povo, uma nação” (a citação pode ser verificada na página 111 do livro). Gostaria de encontrar um jornalista sensacionalista irresponsável que me explicasse por que razão se um cidadão alemão se mostrasse simpático a ou utilizasse a primeira expressão deveria ser considerado um traidor do Brasil, quando o próprio ministro da justiça brasileiro acentuava que este era exatamente o princípio que vigorava no Brasil de Getúlio Vargas.
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Agora as cartas do rapaz que foi servir no exército alemão, em 1939, cujo original pode ser verificado no link abaixo. A primeira diz o seguinte:
Hamburgo, 24 de março de 39. Queridos pais e irmãos. Cheguei aqui no dia 24 (22 horas) e fui recebido pela tia e pelo tio Y., também a tia X. esteve presente. Nevava e estava muito frio, também ontem ainda nevou, mas hoje brilha o sol. Ontem visitou-nos o tio Z., com dois filhos, mas o nome deles eu esqueci. Vou ficar aqui mais alguns dias, para, então ir para Leipzig. A travessia foi muito bonita. Dia 26/2 [saímos] de Rio Grande, Florianópolis 27, Santos 13, Rio de Janeiro 9, Bahia 5. Por Fernando de Noronha passamos mais ou menos em 7. Chegamos em Lisboa no dia 17, em Bremerhafen dia 29, às 4 horas da manhã. Hoje vamos para a cidade, amanhã para T. Éramos 54 homens (450 passageiros de 3ª classe). Também a senhora S. de Rio Grande esteve junto (manda lembranças). Tio Y. possui uma bela casa com um terreno. Domingo vamos no tio U. Como parece, eles estão felizes com minha presença, e esperam que vocês venham meio logo. Tia X. é a que está mais feliz. E agora, queridos pais, muitos abraços. Tua carta recebi. R.
A segunda carta diz o seguinte:
Zwenkau, 31 de março de 39. Queridos pais e irmãos. Ontem cheguei aqui. Estive 8 dias em Hamburgo, na casa dos Y., uma vez estivemos nos U. Hamburgo é muito bonito, mas infelizmente não havia sol. Quando estivemos nos U., a tia X. recebeu uma carta do tio V. na qual ele acusa os teuto-brasileiros de traidores da pátria e os "senhores nazistas" como instigadores. A viagem de Hamburgo a Leipzig fiz de trem, a de Leipzig a Zwenkau com trem pinga-pinga, depois mais meia hora a pé. Zwenkau fica 21 km depois de Leipzig. Espero que vocês venham meio logo. A bordo não se necessita de dinheiro, só nos portos. A ti, querido pai, desejo muita felicidade no teu 50º aniversário. Quanto à lã, tia Y. acha que ela é boa. O café é meio fraco, e facilmente confundível com chá. Muitos abraços a todos. R.
Nesta última carta, é interessante observar que, aparentemente, havia divergências, dentro da família, a respeito de teuto-brasileiros e nazistas. [9/10/2019]