Muitos anos atrás, ao passar pelo Morro Reuter (pronuncia-se Róiter), vi a placa indicativa “Walachai”, e imaginei que o lugar tivesse recebido o nome em função da existência de uma criação de cavalos (Wallach significa cavalo macho castrado, em alemão), já que por ali há também um Teewald (Herval) e um Batatental (Vale das Batatas). Só muito tempo depois, fiquei sabendo que, de fato, aquele nome deriva de Walachia (Valáquia), uma província romena.
Walachai é um distrito de Morro Reuter, com limites, aparentemente, pouco definidos, mas também pode referir-se a um “estado de espírito”, designando toda uma região habitada por uma população rural que fala um dialeto alemão chamado Hunsrück. Neste sentido, a designação, inclusive, extrapola o território do município, abrangendo áreas de municípios vizinhos, como Santa Maria do Herval, Dois Irmãos, Picada Café, Nova Petrópolis. Infelizmente, não tenho os dados eleitorais por urnas, mas imagino que walachaianos tenham ajudado a eleger a única prefeita negra do Rio Grande do Sul, Tânia Terezinha da Silva, em Dois Irmãos.
Quem conhece este meu site sabe que tenho criticado, de forma incisiva, muitas matérias jornalísticas quando se referem aos “alemãos” e “derivados”, como “nazismo”, “neonazismo”. Muitas das bestialógicas asneiras publicadas sobre esses cidadãos são insuportáveis. Por esse motivo, fiquei em estado de alerta quando Zero Hora anunciou que publicaria – na seção “Singular”, do caderno DOC, das edições de sábado/domingo – uma reportagem sobre Walachai, fato acontecido na edição de 4/5 de agosto de 2018. Felizmente, desta vez, tive a impressão de ter lido uma matéria escrita por uma jornalista minimamente inteligente e responsável, Aline Custódio. Mesmo que uma exegese detalhista, certamente, encontraria alguns deslizes, trata-se de um texto com informações relativamente objetivas sobre o lugar e seus habitantes. Não tenho ressalvas graves – claro, o título “a resistência dos alemães” permite várias interpretações, mas, em princípio, não é desabonador.
Quero, apenas, tecer alguns comentários sobre um conceito utilizado ad nauseam por aqueles que se referem aos “alemãos” do sul deste país, e que também aparece aqui – o tal do “isolamento”. Sim, essas pessoas vivem “isoladas”, mas com esse qualificativo aplicado à população em pauta corre-se o risco de esquecer uma série de outros aspectos da questão. Em primeiro lugar, pergunto se o autóctone do interior de Cacimbinhas ou de Cafundó é menos “isolado”? Numa perspectiva histórica, chamei muitas vezes a atenção de meus alunos para o fato de que, a partir de 1874, uma notícia corrente em Porto Alegre poderia levar dias para chegar a Cacimbinhas ou a Cafundó, enquanto chegava no mesmo dia aos “alemãos isolados” lá em São Leopoldo, “berço da colonização alemã”, pelo trem.
Na matéria sobre Walachai, uma professora, associando-se à utilização do conceito de “isolamento”, afirma: “Me chama atenção o desconhecimento deles sobre o que existe fora daqui”. OK, mas quero contrapor a essa constatação uma história vivenciada por mim. Alguns anos atrás, uma de minhas filhas estava cursando jornalismo, e precisava elaborar uma reportagem para determinada disciplina. Por eu ter-lhe falado de São José do Hortêncio – uma Walachai localizada em algum lugar numa linha reta entre Novo Hamburgo e Bom Princípio ou Feliz – como município mais socialista do Brasil, resolveu fazer a tarefa curricular sobre essa comunidade (a qual valeria uma reportagem só por causa de sua estrutura urbana, com uma rua central de 7,5 km, com nome, e as transversais só numeradas, sem nome). Como o trabalho podia ser feito em grupo, minha filha marcou, junto com dois colegas, entrevistas com autoridades locais. Num sábado à tarde, levei os três para lá. Quando atravessamos a ponte do rio Gravataí, os dois rapazes me perguntaram em que cidade nos encontrávamos? Expliquei que ali era o bairro Niterói, pertencente ao município de Canoas. Mais adiante, em Esteio, perguntaram de novo. Aí perguntei se nunca tinham vindo para aquele lado, se nunca tinham saído de Porto Alegre? Responderam que só conheciam a direção da Freeway, pois iam à praia. O resultado óbvio desse “isolamento” metropolitano se revelou ao final da tarde. Quando tinham entrevistado as pessoas com quem queriam falar, embarquei-os no carro e fui até o ginásio de esportes do lugar, onde ocorria um baile da terceira idade. Além do baile, havia artesanato e comida à venda. Enquanto eles estavam concentrados na observação dos “estranhamente isolados” casais e nas músicas, fui a uma banca comprar uma travessa de cuca com linguiça. Quando lhes apresentei o prato, acharam “estranhíssimo”, só gente totalmente “isolada” poderia comer uma coisa dessas. Insisti que provassem, e como tivessem almoçado cedo, a travessa foi esvaziada num instante, com rasgados elogios a uma comida tão boa. Expliquei-lhes que se tivesse pepino em conserva teria sido bem melhor ainda.
Desgraçadamente, o “isolamento” metropolitano vem acompanhado, quase sempre, de um total bitolamento, de uma nojenta presunção de superioridade, motivo pelo qual os jornalistas costumam escrever as bobagens usuais nesses casos. Há vários argumentos para afirmar que o “isolamento” da população de Walachai é, no mínimo, relativo. Na matéria aparece um rapaz de 17 anos que, além do dialeto, domina outras quatro línguas – quantos jovens metropolitanos possuem essa habilidade? O “isolamento” não impede que pessoas nascidas e criadas ali se projetem pelo mundo. Quase ao final da matéria, a jornalista cita o filme “Walachai”, da cineasta Rejane Zilles, uma "autóctone", que atua no Rio de Janeiro; seu primo monsenhor Urbano é um teólogo católico brasileiro de destaque, e foi Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação em uma importante universidade gaúcha.
Os próprios habitantes locais têm, com muita frequência, plena consciência das suas condições de vida. A reportagem cita uma camponesa que diz: “Minha vida é esta, e gosto dela”. Esta frase me lembrou de Goethe, no Fausto: "Oh Augenblick, verweile doch, du bist so schön!". No citado filme de Rejane Zilles aparece uma moça que conta que teve um namorado de Novo Hamburgo, mas que enjoou de ficar presa entre as quatro paredes estreitas de um apartamento da cidade – preferiu voltar para sua casa em Walachai, onde, sobretudo no verão, veste seu biquíni (!), e fica à vontade no gramado, com seus cachorros e outros animais, desfrutando a belíssima paisagem. Num filme intitulado “Land-schaffen”, de Clarissa Beckert e Pedro Henrique Risse, filme que possui muitas afinidades com “Walachai”, um casal de idosos tece considerações semelhantes.
Mas a reportagem ainda desencadeou dentro de mim algumas outras considerações. Para quem nasceu e se criou em Lageado Terêncio, interior de Novo Machado, ouvindo a mãe dizer que éramos pobres, mas éramos independentes, soou como música a informação de que a família Berg, de Walachai, só compra açúcar e farinha, pois com apenas esses dois produtos buscados no “mercado” poderiam tornar-se totalmente livres, independentes, já que podem produzir ambos, a partir da cana-de-açúcar e do trigo ou do milho. Até poderiam viver livres das limitações que um “isolado” metropolitano como eu enfrenta – não sei por quanto mais tempo vou conseguir movimentar minhas contas bancárias, pois a pressão para que eu tenha um telefone celular no qual baixe um “aplicativo” necessário para movimentar minhas contas está cada vez maior. Também não sei por quanto mais tempo conseguirei embarcar num avião com um cartão de embarque em papel. Mas aí me lembrei que, desgraçadamente, o povo de Walachai é cidadão brasileiro, e como tal está obrigado a votar. Por aquilo que tenho lido, ouvido e visto na imprensa, há poucas chances de que nas eleições de 2020 ainda se consiga votar com um título eleitoral em papel – será obrigatoriamente com um "aplicativo" baixado no celular. Talvez – para o bem desse glorioso povo de Walachai – ele não se estresse com bobagens desse tipo, como o “isolado” metropolitano que está a escrever isto aqui.
Para terminar, uma história que não tem nada a ver com Walachai, mas refere um acontecimento de opressão totalitária derivado do avanço tecnológico, e que, mais dia menos dia, atinge “isolados” e não isolados, metropolitanos e walachaianos, a barbárie. Uns três anos atrás, eu abrira uma conta na Caixa Econômica Federal (CEF) em função de meu Fundo de Garantia. Como tivesse gasto o dinheiro, acabei fechando essa conta. Recentemente, surgiu a necessidade de abrir nova conta, no mesmo banco, para realizar outra transação financeira. Desta vez, pensei em tornar-me cliente do banco. Por essa razão, resolvi abrir uma conta conjunta com minha mulher, com quem tenho contas conjuntas em outros bancos, inclusive públicos, há 40 anos. Certo dia, fomos a uma agência da CEF, munidos de toda a documentação que costuma ser exigida. Meu cadastro foi tranquilo, mas quando a funcionária se pôs a preencher o cadastro de minha mulher, não funcionou, e ela comunicou que era impossível fazer o registro, porque no “sistema” da CEF o CPF consta com o nome da mãe como de casada, enquanto na certidão de nascimento, de casamento e na sua carteira de identidade está apenas o nome de solteira, ou seja, na documentação a mãe é “Ana Santos”, enquanto no registro da CEF está como “Ana Santos Silva”. Imagine-se: todos os demais dados da titular estão de acordo (nome, data de nascimento, número do CPF, número do RG, nome do pai, etc. etc. etc.), só um pedaço do nome da mãe não confere. Minha mulher perguntou se poderia falar com o gerente para que ele “quebrasse” a birra do “sistema”. A senhora que nos atendia disse que ela era a gerente, e nada podia fazer para obrigar o “sistema” a mudar de ideia. Isso aconteceu no dia 4 de julho de 2018, na agência da CEF localizada na Avenida Protásio Alves, 2589, Porto Alegre. Falei para a gerente que, diante da situação, se ficasse apenas no registro de meu nome como titular da conta, que eu sacaria todo o dinheiro, assim que ele estivesse disponível.
Como entusiasta da Modernidade, fiquei meditando sobre o acontecido, e só então me dei conta da dimensão da barbárie. Como minha mulher é cidadã brasileira em pleno gozo de todos os direitos inerentes (políticos, sociais, econômicos etc.), tenho certeza de que qualquer juiz que fosse minimamente fiel à letra e ao espírito de nossa ordem constitucional (um "garantista", como os juízes devem ser) emitiria uma sentença determinando que a CEF abrisse uma conta em nome dela. Mas aí vem a barbárie. Imagine-se: vem o oficial de justiça com a sentença, mas como a própria gerente não pode “quebrar”, isto é, contrariar, a insanidade do “sistema”, ela será, forçosamente, presa por desacato a uma ordem judicial. Que barbárie! Se não é assim, a gerente foi desleal para conosco!
Acontecimentos desse tipo, mais uma vez, evidenciam a grandeza de Max Weber, quando, já 100 anos atrás, desenhava um quadro lúgubre sobre o “ehernes Gahäuse der Hörigkeit”, a “carapaça de aço da submissão”, expressão mais conhecida em português como “jaula de ferro da submissão”. Ele ainda era otimista, pois dizia que ao menos o “Bauer”, o camponês, continuava livre. Hoje nem os walachaianos o são mais. Interpreto, porém, o título da matéria em Zero Hora (“a resistência dos alemães”) como um reconhecimento de sua bravura em resistir. E se eles não fogem à raia, seria covardia da parte dos metropolitanos instruídos e iluminados se o fizessem (mais uma vez, a "resistência heróica" de Weber serve de inspiração). Claro, aquilo que se pode fazer é muito pouco, mesmo assim, apesar das muitas opiniões em contrário, continuo batendo na tecla de que não é o sonho, mas, sim, o sono da razão que produz monstros (Goya). [7/8/2018]