Provavelmente em função dos acontecimentos de Charlottesville/EUA, em agosto deste ano, duas revistas brasileiras de suposta ou efetiva divulgação científica dedicam matérias ao tema nazismo/”neonazismo”, em suas edições de outubro de 2017. Trata-se de GALILEU e SUPERINTERESSANTE. Nesta nota, tratarei da primeira revista, na próxima nota trato da segunda.
Quando, em 2009, ocorreu a prisão de Jairo Maciel Fischer, em Teutônia, RS, sob a acusação de ter assassinado um casal de companheiros “neonazistas”, no Paraná, jornalistas da TV-Bandeirantes de Porto Alegre entraram em contato comigo para saber se eu estaria disposto a dar uma entrevista sobre o assunto. Aceitei, alertando, porém, antecipadamente, que eu não denunciaria a população de Teutônia como uma horda de “neonazistas”. A pessoa que fizera o contato enfatizou que, mesmo assim, a entrevista interessava, e seria feita – esperei a tarde toda, mas ninguém apareceu. No noticioso regional da noite, foi apresentada uma matéria sobre símbolos do “neonazismo”, especificamente o do coturno com cadarço branco – sem qualquer conexão com o episódio de Teutônia.
Noutra oportunidade, a RBS-TV marcou e compareceu para uma entrevista. Não memorizei a pergunta inicial em seus termos exatos, mas o sentido foi mais ou menos o seguinte: por que os “alemães” do Rio Grande do Sul são tão animalescamente “neonazistas”? Comecei respondendo o óbvio – que a pergunta estava mal formulada, que partia de um pressuposto não comprovado, sem base factual etc. Depois de três ou quatro frases, nesse sentido, o entrevistador me interrompeu, começou a uivar que estava perdendo seu tempo, saiu da sala, chutando, literalmente, uma cadeira. O pessoal técnico desmontou a aparelhagem, e foi atrás do repórter, que já estava longe.
Em 2015, na primeira hora de uma manhã, fez contato uma moça da TVE-RS para marcar uma entrevista. Novamente, alertei que aquilo que eu tenho a dizer sobre “neonazismo” não é exatamente aquilo que os repórteres esperam. Ela disse que levaria minha ponderação à produtora do programa. Depois de algum tempo, esta própria fez contato. Queria saber detalhes sobre aquilo que eu tenho a dizer sobre o tema. Ao final da minha explicação, disse que consultaria a equipe do programa, para uma decisão coletiva. Algum tempo depois, ligou novamente, para confirmar o interesse pela entrevista, informando que, durante a tarde, apareceria um entrevistador. A matéria iria ao ar no noticioso regional da emissora, às 19h30min. Pelas 18 horas, apareceu o entrevistador. Sua primeira pergunta foi: qual a explicação clássica do senso comum para a (suposta) frequência de manifestações e atos considerados “neonazistas” no Rio Grande do Sul? Tentei resumir a opinião dominante no senso comum através de frases com os verbos no indicativo, isto é, que há um relativamente alto percentual de população de origem alemã por aqui, que desde o início da colonização essa gente não se adaptou ao Brasil, que, muitas vezes, nem sabia que aqui é Brasil, que quando o nazismo surgiu na Alemanha absolutamente todos se tornaram desvairados adeptos de Hitler, que depois da guerra nunca abandonaram as ideias e as práticas nazistas, que, adicionalmente, vieram enormes bandos de nazistas fugidos da Alemanha pós-guerra, de forma que, hoje, todos eles são verdadeiros animais “neonazistas”. A segunda pergunta do repórter, obviamente, foi sobre minha opinião pessoal a respeito dessa visão generalizada no senso comum. Quando fui assistir ao programa, à noite, constatei – pasmo! – que a matéria abriu direto com minha resposta à primeira pergunta, porém, sem qualquer indicação de qual tinha sido essa pergunta, e sem a apresentação de uma única sílaba do restante de minha fala. Ou seja: utilizaram-se minhas palavras arrancadas do contexto, dando-lhes um sentido diametralmente oposto àquele por mim pretendido. Conto essa história trágica para que os leitores possam entender a referência que farei, mais adiante, ao fato.
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Com data de 20 de julho de 2017, recebi o seguinte e-mail: “Prezado Prof. René Gertz, Boa tarde! Meu nome é André Bernardo e sou repórter da revista ‘Galileu’, tudo bem? Estou apurando uma pauta sobre Neonazismo no Brasil, e gostaria de saber, por gentileza, se o senhor gostaria de participar dela? Caso aceite meu convite, em dois ou três dias, envio as perguntas por e-mail. Se preferir conversar por telefone, estou à disposição no dia e horário de sua preferência. Qualquer dúvida, estou à disposição. Abraço e, desde já, obrigado! André Bernardo”.
No dia 23 de julho de 2017, respondi, nos seguintes termos: “André, confesso que não conheço a revista ‘Galileu’. Olhei o site no Google – e, em tese, me pareceu ‘normal’. Digo isso porque, algumas semanas atrás, aceitei um convite para escrever um artigo, sobre o mesmo tema, para uma revista, e quando fui verificar o site constatei que ela segue uma linha esotérica. NADA a ver comigo – constrangido, tive de retirar minha promessa. Para mim tanto faz, podemos conversar ao vivo, mas podes me mandar as perguntas pelo e-mail – dá mais tempo de pensar e responder de forma mais precisa. Abraço. René”.
As perguntas (que serão apresentadas abaixo) foram enviadas, e, em 26 de julho, mandei o seguinte e-mail: “André, anexo vai o arquivo com minha entrevista. Podes acusar o recebimento? Alguns meses atrás, dei uma entrevista (gravada), imagem e som, sobre o mesmo assunto, e quando a matéria foi transmitida pela televisão haviam sido feitos recortes que transformaram uma afirmação minha no EXATO inverso daquilo que eu havia efetivamente dito. Como o repórter era mentalmente limitado, nada fiz. Mas decidi que se minhas palavras forem novamente deturpadas, seja por ‘resumos’ daquilo que afirmei, seja por recortes, acionarei a Justiça. Isso NÃO significa que minhas afirmações não possam ser contestadas por jornalistas e semelhantes NEM que não possam ser arroladas vozes que discordem diametralmente – trata-se EXCLUSIVAMENTE da preservação dos termos e do conteúdo daquilo que eu EFETIVAMENTE disse. Nesse sentido, obviamente assumo a responsabilidade daquilo que escrevi na entrevista, bem como daquilo que está no meu livro e no meu site. Estou entregando o material antes do prazo, para que eventuais dúvidas possam ser esclarecidas a tempo”.
O jornalista acusou o recebimento desse e-mail. No dia 8 de agosto de 2017, voltou a me escrever: “Só hoje, por uma série de outros compromissos, consegui ler, mais atentamente, suas respostas. Vejo que o senhor utilizou, cinco vezes, a expressão ‘indústria do neonazismo’, certo? O senhor poderia explicar, por gentileza, o que vem a ser ‘indústria do neonazismo’? Quem estaria por trás dela? E o que pretendem?”.
No mesmo dia, respondi: “André, pela leitura dos meus textos, muita gente pensa que eu sou um troglodita carrancudo, de maus bofes. Na verdade, sou um grande brincalhão, que gosta de recorrer à ironia. Dito isso, começo fazendo uma brincadeira contigo – para tentar explicar que é a ‘indústria do neonazismo’. No mínimo em uma das tuas perguntas te revelas participante da ‘indústria do neonazismo’, ao catapultar Adriana Abreu Magalhães Dias para uma posição acadêmica que ela não tem. Na terceira pergunta, tu dizes que ela é ‘DA UNICAMP’. Por favor, isso é fabricar (‘indústria’) uma grandeza que essa senhora não tem. Ela fez mestrado na UNICAMP (terminado no segundo semestre de 2007), começou o doutorado em 2008, e no dia em que respondi ao teu questionário fiz uma rigorosa verificação para constatar que ela não terminou esse curso. Não sei se trancou, foi jubilada ou algo assim. Mas essa senhora NÃO consta como professora ou pesquisadora dessa instituição, fato que justificaria a classificação ‘DA UNICAMP’. Isto é ‘fabricar-lhe’ um status que ela não possui. Concretamente, como eu rechaço essa concepção conspiracionista de que os atos ‘neonazistas’ no Rio Grande do Sul fazem parte de uma montagem para implantar o ‘neonazismo’ no planeta, seu contraponto, a ‘indústria do neonazismo’, não tem ninguém ‘por trás’, como tu perguntas. Por razões históricas e contexto, neste momento é chique declarar-se ‘antineonazista’. Isso dá IBOPE, isso pode render a um jornalista o Prêmio Esso de Jornalismo (não sei se ainda existe), além de ser muito fácil, não precisa aprofundar a pesquisa, todo mundo acredita, mesmo que relatas uma grandíssima bobagem”.
“Na semana passada, aconteceu uma coisa muito interessante, um jornalista de uma revista provavelmente concorrente de vocês me mandou um e-mail e queria falar comigo (não por e-mail). Nestes casos, prefiro o skype. Pela fala dele, ficou claro que ele se comprometeu com essa revista a escrever um artigo que deveria mostrar a (suposta) barbárie neonazista em SC. Ele lera meus textos, e vira que eu não apoio a ideia. Mas – tudo indica – queria jogar a última cartada para arrancar de mim a afirmação de que os ‘alemães’ são responsáveis por tudo isso. Vi que ele ficou muito contrariado quando lhe perguntei que material ou que casos ele tinha. Ele enumerou: em SC existe um professor que colocou uma suástica na piscina; em Rio do Sul, três caras agrediram os integrantes de uma banda punk; e em São Francisco colaram um cartaz de Hitler – fatos que, para ele, seriam provas cabais da maldade inata dos ‘alemães’ daquele estado, porque só num estado com tantos deles, uma barbárie dessas poderia acontecer. Vi como o entusiasmo dele murchou (ele estava tentando lucrar com a ‘indústria do neonazismo’, talvez lhe prometeram um bom dinheiro pela reportagem). Lembrei a ele que o professor não tem sobrenome alemão, e é um cara que veio de SP, pensando que faria o maior sucesso com a suástica; dos três caras que agrediram os integrantes da banda, dois eram do Paraná e um de SP, ou vice-versa; finalmente, sobre o cartaz em São Francisco seria necessário verificar que realmente aconteceu, pois uma semana depois foi colado um cartaz idêntico com Stalin, e mais uma semana depois um com Charles Chaplin. Ou seja, neste último episódio precisa, antes de colocar na vitrine, isto é, acionar a ‘indústria do neonazismo’ via imprensa, investigar MUITO para ver que REALMENTE aconteceu”.
Na edição de GALILEU referente a outubro, o tema nazismo/”neonazismo” é capa. Em termos gerais, trata-se da usual requentada gororoba intragável, nesse tipo de matéria jornalística. NENHUMA referência a minha pessoa. E a ausência de QUALQUER referência, obviamente, se deve à minha entrevista nada “ortodoxa”, claramente contestadora de um dogma. Se esse é o fato, pergunto se não estamos diante de uma usurpação do nome de Galileu por parte da revista, de um atentado a sua memória? Uma das razões para ter entrado para a História foi a de ter enfrentado um dogma de sua época – o de que a Terra seria o centro do universo. E eu contesto o dogma de que a) o Rio Grande do Sul está abarrotado de “neonazistas”, e b) que absolutamente todos eles são “alemães”. Se a revista GALILEU não mostrou o mínimo interesse pela minha tentativa de desmistificação desse dogma, lamento profundamente que esteja usando esse nome, e faço minhas as palavras do grande cientista: “e pur si muove!” – pois apresento muitos argumentos e dados nesse sentido. Mas, sobretudo, destaco que o fato de um procurador da República ter desencadeado uma humilhante “desneonazificação” no vale do rio Taquari, RS, por acreditar no dogma de que populações originárias de “colonização germânica” possuem uma “tendência” ao “neonazismo” (mostrando a que nível chegaram os efeitos maléficos das difamações étnico-raciais por parte de gente sedizente antirracista, através da imprensa), teria mais que justificado uma atitude nobre, digna de uma revista que se enfeita com o nome de Galileu em dar voz a um contestador desse dogma! Pense-se ainda no fato de que, em 2009, a deputada Maria do Rosário Nunes, RS, constituiu uma espalhafatosa Comissão Externa da Câmara dos Deputados para caçar “neonazistas” no Rio Grande do Sul, a tristemente famigerada CEXNEONA, que não encontrou nada contra os “alemãos”, mas não teve coragem de confessar esse fato, em relatório – ficando como único resultado dessa desastrada aventura, o desperdício de enormes quantias em dinheiro dos parcos recursos públicos. Pense-se ainda na constante instigação ao ódio étnico-racial contra brasileiros de sobrenome alemão promovido pela indústria do “neonazismo”, e tem-se a dimensão da oportunidade que a revista GALILEU perdeu para honrar seu nome, e dar uma contribuição mínima para a desbarbarização deste país!
Abaixo, minha entrevista (solicitada, mas não publicada por GALILEU)
(para esclarecer e reforçar alguns aspectos, foram feitas pouquíssimas e pequenas alterações no texto publicado abaixo, mas sem qualquer alteração do sentido original)
GALILEU: No Recife (PE), um professor do 3º ano do Colégio Santa Emília expôs bandeiras com símbolos nazistas durante uma aula sobre a origem dos estados totalitários. Em Porto Alegre (RS), uma professora estagiária de Filosofia do Colégio Paula Soares foi demitida por exigir que os alunos fizessem a saudação nazista em sala de aula. No Rio de Janeiro (RJ), uma suástica foi pichada no muro do Clube Israelita Brasileiro, em Copacabana. Em sua opinião, são casos isolados ou indícios de um neonazismo à brasileira? Por quê?
RENÉ GERTZ: Não tenho informações sobre o primeiro e o terceiro casos. Este último, em tese, indica para um episódio típico de antissemitismo. Para uma avaliação abalizada, porém, deveria haver elementos sobre autoria, motivação etc. – informações de que não disponho. Em relação ao primeiro caso, vale, exatamente, o mesmo argumento – quais foram as intenções do professor? Pelo texto da pergunta, é possível imaginar que ele tenha exposto símbolos daquilo que considera Estados totalitários – de esquerda e de direita –, um conceito amplamente aceito no debate acadêmico, isto é, concretamente, de suástica e foice-e-martelo. Neste caso, a intenção pode ter sido boa, a execução eventualmente infeliz, ou até ilegal. Não sou jurista para avaliar se uma exposição para fins didáticos da suástica se enquadraria no art. 20 §1º da Lei 7.716/89 – ou versões posteriores, como a Lei 8.081/90: “Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”. Só um jurista poderia palpitar se o professor – na presunção da boa intenção de familiarizar seus alunos com símbolos do mal – incorreu no ato ilegal de tê-lo feito “para fins de divulgação do nazismo”. Peço desculpas por não poder dar respostas definitivas sobre estes dois casos.
No entanto, me sinto muito à vontade para dizer que o segundo caso constitui um brutal atentado de uma imprensa ética e moralmente repugnante, atrelada à indústria do “neonazismo”, neste país. Os fatos apresentados são os seguintes: uma estudante do curso de Filosofia da PUCRS faria seu estágio de docência no Colégio Paula Soares, em Porto Alegre. No primeiro dia de aula, ao ficar sozinha com a turma, após a apresentação da professora-titular da disciplina, se teria declarado nazista, exigindo que os alunos a saudassem de braço erguido, e beliscado uma aluna que se negou a obedecer às suas ordens. Esta é a descrição aproximada, feita pela imprensa, dos fatos suposta ou efetivamente ocorridos na sala de aula (http://www.sul21.com.br/jornal/escola-registra-ocorrencia-contra-universitaria-por-apologia-ao-nazismo-durante-estagio/).
Peço desculpas se passo a ser enfático, mas diante da descrição desses acontecimentos QUALQUER jornalista que tenha ao menos um neurônio em funcionamento e possa ser declarado de posse de suas faculdades mentais deveria ter concluído que ali havia ocorrido uma situação de absoluta anormalidade – e não uma apologia do nazismo! Não cabe aqui discutir se essa anormalidade era permanente na moça ou ocasional, eventualmente decorrente do estado de tensão, num primeiro dia de estágio, mas divulgar ao mundo esta notícia como ato de apologia do nazismo constituiu uma irresponsabilidade jornalística imperdoável! Publicada num informativo online (Sul21), em 13 de abril de 2017, a notícia foi repercutida, no dia seguinte, nos dois maiores jornais do Rio Grande do Sul, Correio do Povo e Zero Hora. Mas a monumental irresponsabilidade (não sou jurista para eventualmente classificar a atitude jornalística como brutalmente criminosa – ainda que não tenha nenhuma dúvida da brutalidade antimoral e antiética que aqui ocorreu) continuou, e se aprofundou uma semana depois. Na manhã do dia 19 de abril de 2017, a polícia gaúcha convocou uma coletiva de imprensa para anunciar o encerramento do caso – por motivos óbvios, isto é, a inimputabilidade da moça pelos seus atos, na sala de aula! Mas vejam só a barbárie de irresponsabilidade jornalística: o próprio Sul 21 noticiou o desmentido da polícia (20/4/2017), numa pequena nota, o Correio do Povo online também trouxe uma pequena nota (19/4/2017). Não sou assinante de Zero Hora, mas na parte a que tive acesso, online, na noite de 19/4/2017, não encontrei qualquer referência. Em todo caso, posso afirmar com absoluta certeza que na edição impressa do dia 20/4/2017 nem Zero Hora nem Correio do Povo noticiaram o fato. Bota irresponsabilidade jornalística nisso!!! O fato de que os repórteres de Galileu registraram o acontecido como efetiva manifestação nazista mostra quanta razão eu tinha no próprio texto que postei no meu site – de que esse registro ficaria na memória da opinião pública como verdadeiro, quando de fato, claramente, não o foi (para ver, clicar aqui). [Apesar dessa informação ao jornalista, o episódio é apresentado como verdadeiro, logo no início da matéria, página 37, com que GALILEU se alinhou àquilo que chamei de “imprensa de latrina”, em minha “nota”].
Em conclusão: dos três casos propalados pela indústria do neonazismo como “nazistas”/”neonazistas”, 33% definitivamente não o foram, no caso de outros 33% há dúvidas justificadas. E se tivéssemos acesso às possíveis investigações policiais sobre o caso, talvez até o terceiro episódio se revelasse como uma brincadeira de mau gosto de “guris bestas”. Aos possivelmente jovens integrantes da revista Galileu, recomenda-se, por esse motivo, que, no futuro, façam um investigação profunda antes de pressupor como “nazistas”/”neonazistas” todas as manifestações e/ou todos os atos assim classificados pela imprensa criminosamente irresponsável, em relação a esse assunto.
GALILEU: Em 2012, o senhor lançou um livro intitulado “O Neonazismo no Rio Grande do Sul”, certo? Qual seria o perfil dos neonazistas gaúchos, por gentileza? Como eles se organizam? O que pregam? Como agem? O que conseguiu descobrir a respeito deles?
RENÉ GERTZ: O delegado Paulo César Jardim é conhecido como a maior autoridade em repressão e monitoramento de “neonazistas” no Rio Grande do Sul. Ele vem dizendo há anos que tem 35 indivíduos na sua lista. No meu livro, cito 32. No início, lá em 2003, quando o grupo foi detectado como integrante de uma banda chamada Zurzir, tinha entre 17 e 30 anos. Pela lógica, hoje serão 14 anos mais velhos. Gente de classe média urbana, cultivam símbolos, discursos e concepções inspiradas ou tomadas do nazismo, apontando como inimigos da sociedade mais ou menos os mesmos que o nazismo apontava.
GALILEU: Segundo dados da antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, o Rio Grande do Sul teria, em 2013, em torno de 42 mil simpatizantes do nazismo. O senhor costuma dizer que esses números são superestimados, certo? Por quê? Quantos seriam, na realidade?
RENÉ GERTZ: Em primeiro lugar, aquilo que Adriana Abreu Magalhães Dias diz é ambivalente: claro, ela tem referido esses números, mas quando inquirida com mais rigor, afirma que aquilo que ela detectou em território de Santa Catarina e Rio Grande do Sul é que, nos dois estados juntos, estariam quase 60% daqueles internautas que acessam sites neonazistas e baixam uma quantidade significativa de material. O senso comum e a própria Adriana Dias chegam, por essa via, ao número de 87.000 “neonazistas”, nos dois estados (de acordo com entrevista da antropóloga, em 2013). Não tenho competência técnica para contestar esses números, mas tenho motivos bastante fortes para manter distância em relação a essa pessoa e a seus números.
Em maio de 2008, consegui acesso à sua dissertação de mestrado sobre o tema, defendida em 2007, na UNICAMP. Escrevi um comentário crítico, completamente dentro de termos determinados pelo decoro acadêmico. Como democrata, antes de publicar esse comentário, considerei correto submetê-lo à apreciação da própria criticada. Apesar de uma busca intensa, não consegui localizar nem o endereço postal nem o endereço eletrônico dela. Como na dissertação consta o nome da professora-orientadora, e dela havia e-mail no site da universidade, mandei-lhe meu texto, com o pedido de que o repassasse a sua ex-orientanda. Isso aconteceu em torno de 10 horas da manhã. Pelas 19 horas do mesmo dia, eu estava em minha casa quando tocou o telefone. Ao atender e me identificar, meus ouvidos foram inundados com palavras de impropério que eu – do alto de meus 59 anos – nunca tinha ouvido. Não sabia de que se tratava. Só depois de vários minutos, consegui saber que quem estava falando era Adriana Abreu Magalhães Dias, que tinha ficado possessa com as críticas acadêmicas que eu fizera a alguns aspectos de seu trabalho. Infelizmente, não tenho secretária eletrônica no telefone, mas o nível daquilo que ouvi pode ser imaginado por quem ler a segunda agressão que sofri, alguns meses depois, POR ESCRITO (e no escrito a moça foi moderadíssima, na comparação com a agressão verbal, ao telefone). Transcrevi grande parte desta segunda catilinária no meu citado livro. Mais tarde, ficou claro que ela havia recorrido a serviços de informação para obter meu telefone privado, a fim de invadir minha privacidade, e me agredir daquela forma vil! Na página VIII de sua dissertação, Adriana Dias cita nominalmente agentes de Estado que a teriam ajudado a combater “neonazistas”. Mesmo não podendo citar nenhum indício de que esses mesmos agentes de Estado – ou outros – tenham interferido junto a órgãos de informação para obter meu telefone privado, a hipótese, no entanto, é plausível – e neste caso, nosso Estado Democrático de Direito seria um produto de saudosa memória (imagine-se Adriana Abreu Magalhães Dias tão empoderada que órgãos de informação lhe fornecem dados sobre aquelas pessoas que ela desconfia serem “neonazistas”!). As agressões que sofri dessa senhora mostram que se trata de uma pessoa totalmente destemperada! Pergunto se é possível acreditar que possa produzir ciência confiável?
Como mais um deplorável episódio patrocinado pela indústria do neonazismo, em 2009 a deputada federal gaúcha Maria do Rosário Nunes conseguiu formar na Câmara dos Deputados uma Comissão Externa para investigar esse suposto mal no Rio Grande do Sul. Composta – além da citada e outros – pelos deputados Pompeu de Mattos (RS) e Marcelo Itagiba (RJ), essa tal de CEXNEONA realizou uma sessão pública na Assembleia Legislativa gaúcha, em 13 de julho de 2009. Durante a reunião, o último deputado citado perguntou àquele que é considerado o maior caçador e monitorador de “neonazistas” no Brasil, delegado Paulo César Jardim, se eles também existiam em Santa Catarina? Resposta verbal do delegado: “Nós temos alguns informes relativos a Santa Catarina, mas não com essa contundência dos outros estados”. Essa afirmação está na página 57 da transcrição das falas ocorridas na citada reunião (para conferir, veja aqui). Vale relembrar que uma imprensa criminosamente irresponsável tem enchido o mundo com a notícia derivada da entrevista da senhora Adriana Abreu Magalhães Dias de que METADE dos “neonazistas” brasileiros estaria nesse estado. Como acreditar na ciência (?) dessa pessoa, se a polícia os desconhece por completo?
Uma última observação sobre a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias: ela ingressou no doutorado em Antropologia da UNICAMP, em 2008. Até este momento (26/7/2017), não há registro de que tenha concluído esse curso.
Lamentavelmente, a ciência produzida pela senhora Adriana Abreu Magalhães Dias sobre o número de “neonazistas” no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina tem afetado até o mundo acadêmico. Certo dia, recebi telefonemas e e-mails informando que o muito respeitado filósofo Roberto Romano, da UNICAMP, tinha declarado na Globo News que no sul do Brasil haveria enormes hordas deles. Quando o questionei a respeito, ele confirmou a afirmação – ao menos em termos gerais –, argumentando que tinha colhido a informação numa matéria publicada sobre a entrevista de Adriana Dias – sem qualquer observação crítica! – por um órgão de divulgação que congrega os “humanistas” de uma das mais importantes universidades declaradamente cristãs do Rio Grande do Sul!
GALILEU: Há quem diga que um dos erros mais recorrentes ao discutir neonazismo no Brasil seja associar esses grupos extremistas a imigrantes alemães. O senhor concorda? Por quê? A que o senhor atribui essa associação, por gentileza?
RENÉ GERTZ: Na verdade, o sucesso da indústria do neonazismo decorre exatamente dessa associação – implícita ou explícita – do “neonazismo” com cidadãos brasileiros de sobrenome alemão (em especial, no “sul” do país). E é aí que reside o caráter absolutamente nazifascista dessa indústria, pois pratica EXATAMENTE aquilo que o nazismo fazia, isto é, escolher um inimigo responsável pelas supostas maldades que afetam um país ou uma sociedade – aqui, os tais dos “alemães”. No Rio Grande do Sul, chegamos ao ponto de um procurador da República ter desencadeado uma cruzada de “desneonazificação” de toda a região sob sua jurisdição, porque acreditava que pessoas originárias de “colonização germânica” tinham uma “tendência” ao “neonazismo”. Uma técnica pericial em Antropologia do MPF-RS, uma doutora (!) em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lhe atestara que “o conjunto dos concidadãos” do município de Teutônia estava “fragilizado” pelo “neonazismo”.
Que há de verdade em tudo isso? Apesar de a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias ser responsável pela presunção de que METADE de todos os “neonazistas” existentes no Brasil estaria concentrada em Santa Catarina, órgãos policiais os desconhecem, e, portanto, não temos nem lista de nomes nem locais em que estariam. Quanto ao Paraná, numa lista de 12, aparece um único sobrenome alemão. E quanto ao Rio Grande do Sul, os episódios classificados como “neonazistas” aconteceram nas duas regiões de maior concentração urbana do estado: a metropolitana de Porto Alegre e Caxias do Sul – e não na “colônia alemã” (a ÚNICA exceção, o caso de Teutônia, está exaustivamente esclarecida neste site). Quanto aos sobrenomes, dos 32 arrolados em meu livro, um deles possui apenas um sobrenome (alemão) e outros quatros possuem metade de seu sobrenome alemão, denotando tratar-se de “assimilados”, pois originários de casamentos interétnicos. Isso resulta num percentual bem abaixo de sobrenomes com alguma influência “alemã” daquele verificado no conjunto da sociedade gaúcha. Quem puder dizer que está de posse de suas faculdades mentais tire suas próprias conclusões – e esqueça a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias! [30/9/2017]