Em outubro de 2017, a revista SUPERINTERESSANTE dedica um dossiê a nazismo/”neonazismo” no Brasil. Contei 13 textos diferentes – com uma variedade de autore(a)s. Não vou arrolar e comentar todos os temas abordados, mas o panorama é amplo, e mesmo que o(a)s autore(a)s não sejam historiadore(a)s profissionais, nota-se um bom preparo.

 

Alguns textos constituem resenhas de pesquisas de historiadore(a)s, com uma seleção razoável, pois aqueles referidos efetivamente são representativo(a)s do ramo. Poderiam apontar-se pequenos deslizes, mas na minha leitura da primeira à última letra – à exceção do caso que vou comentar abaixo – não encontrei problemas comprometedores. Há um leque variado de assuntos, incluindo, por exemplo, um comentário desmistificador sobre um livro que afirma que, após a Segunda Guerra, Hitler teria fugido para o Brasil, e morrido idoso no Mato Grosso. As violências praticadas por autoridades brasileiras contra supostos ou efetivos nazistas são referidas. Inclusive eu – relativamente bem informado sobre o assunto – tive de fazer uma pequena modificação numa das “notas” deste site, quando escrevi, com base em informação verbal, que a família de um perseguido político da época recebeu do Estado brasileiro quase 2 milhões de reais em indenização, quando, de fato, seria de apenas algo como um quarto desse valor (para ver, clicar aqui).

 

Claro, a “leitura” que será feita das matérias, pelo público, escapa ao controle dos autores. Fiquei pensando quantos leitores não imaginarão – como eu imaginei, à época – que o dono da entrementes famigerada “fazenda nazista” do interior de São Paulo obviamente só poderia chamar-se Wilhelm Schneider, quando, na realidade, os donos foram os irmãos Miranda, provavelmente, brasileiros “quatrocentões”. Mas como modesto responsável por este site, não tenho nenhuma dúvida em parabenizar os autores dos textos. Mostraram profissionalismo, tentativa de objetividade, ponderação.

 

Merece destaque todo especial aquilo que se lê na página 62. Ali está falando aquele que é festejado como o maior conhecedor, monitorador e combatente do "neonazismo" no Brasil, o delegado Paulo César Jardim, da Polícia Civil do RS. Para quem está alfabetizado, pode ler com seus próprios olhos: "desde 2005 [em 12 anos, portanto!], foram 'entre 40 e 50 indiciamentos' por crimes relacionados aos neonazistas, segundo cálculos do delegado Paulo César Jardim, que investigou o caso [do ataque a três rapazes vistos como judeus por usarem quipá, em 2005] e que é considerado uma das maiores autoridades no assunto no País". Mais adiante, os alfabetizados podem ler: "O delegado Paulo César Jardim também vê uma evolução: a atuação dos grupos neonazis 'tem diminuído acentuadamente'". Aqui está! Eu mesmo escrevi em algum lugar que há indícios de que ocorreu um "adensamento" de manifestações e atos "neonazistas" em 2009 - talvez por causa do transcurso do 120º aniversário de Hitler, naquele ano. Aliás, o editor do dossiê poderia ter comentado esses dados numa eventual "conclusão" da revista. Teria sido muito mais edificante que a leviana agressão à "imigração alemã" contida na apresentação (vide abaixo).

 

Mas, antes, voltemos aos dados estatíticos. Mesmo utilizando o número mais alto citado pelo delegado Jardim (50 indiciados), teríamos menos de 1 (hum!) "neonazista" por cada 200.000 (duzentos mil!) habitantes do Rio Grande do Sul. Imagine-se a polícia anunciando que o máximo (!) de bandidos dos mais perigosos que o estado já teve se reduz a esse número. Este estado seria manchete em todo mundo, e certamente haveria uma peregrinação internacional para esse paraíso. Conclusão para quem está de posse de suas faculdades mentais: a indústria do "neonazismo" é MUITO, MUITO mais maléfica que os próprios "neonazistas". Ao contrário dos "neonazistas", os promotores da indústria do "neonazismo" - alguns deles doutores - têm à sua disposição poderosíssimos órgãos de imprensa para divulgar suas deslavadas instigações ao ódio étnico-racial. O delegado Paulo César Jardim faria muito bem em começar a monitorar e a combater essa máfia, pois muito mais perigosa para a paz e a estabilidade deste país que a meia dúzia de  meninos "neonazistas", que, possivelmente, experimentaram alguma falha em sua educação.

 

Encerro com algumas observações críticas. Ao menos um pequeno deslize devo registrar na apresentação do editor do dossiê, Alexandre de Santi. Ele escreveu: “A imigração alemã trouxe a ideologia nazista para cá e ajudou a inspirar um movimento fascista 100% nacional, o integralismo”. Como aconteceu na revista GALILEU, o editor de SUPERINTERESSANTE, aqui, também requentou, de forma totalmente acrítica, uma gororoba insossa. Não é pelo fato de que, em 1928 ou 1929, nas pirambeiras do interior de Santa Catarina, se teria formado um núcleo nazista que a ideologia nazista se difundiu no Brasil. Imagino que o editor seja formado em jornalismo, e tenha folheado, em algum momento, órgãos de imprensa antigos. Se o fez com exemplares do início dos anos 1930, terá visto que matérias e fotos sobre Hitler e nazismo eram estampados, com destaque, na primeira página, nos maiores jornais “autenticamente” brasileiros, cujos proprietários eram brasileiros “quatrocentões”, e que não sofriam influência de nenhum alemão proveniente da imigração, sobretudo das pirambeiras de SC ou do RS. Aqui, o editor, infelizmente, perdeu uma boa oportunidade em NÃO contribuir para a instigação ao ódio étnico-racial contra cidadãos brasileiros cujo único defeito é possuírem um sobrenome alemão! Uma leitura criteriosa daquilo que seus "comandados" escreveram em vários dos textos lhe teria mostrado que os dados objetivos, factuais ali apresentados não maculam, de forma demolidora, a "imigração alemã".

 

Em contrapartida, poderia ter escrito uma “conclusão”, pois com um leque de 13 temas diferentes, fica a pergunta se “alhos tem a ver com bugalhos”. No “box” da página 65, é citado o escriba destas linhas: os neonazistas “’são grupos que se inspiram, se referem ao nazismo e aos inimigos que o nazismo tinha, como judeus, negros e homossexuais, mas não há uma continuidade’, afirma o professor aposentado René Gertz”. Lembro que depois da lamentável escorregada do então procurador da República em Lajeado, foi emitida uma declaração formal do MPF-RS de que NÃO possui indícios, e muito menos provas, de que os “alemães” sejam os responsáveis pelo “neonazismo” no Rio Grande do Sul (para ver, clicar aqui). Como se trata de uma revista de divulgação, que certamente se propõe a servir de orientação a um público não especializado, algumas palavras nesse sentido, com certeza, teriam sido úteis, bem mais úteis que a observação potencialmente instigadora ao ódio étnico-racial contra a “imigração alemã”, isto é, concretamente, contra os muitos milhares de cidadãos brasileiros que possuem um sobrenome alemão.

 

Mas a grande tragédia está no texto assinado por Daniel Cassol, sob o título “Meu professor é nazista”. Esse jornalista fez contato comigo, e me solicitou uma entrevista. Ela ocorreu no dia 26 de julho de 2017, via Skype. Desde o início, ficou claro que ele queria arrancar de mim uma declaração de que os “alemães” brasileiros são responsáveis pela existência de “neonazismo” neste país (talvez estivesse inspirado pelo editor do dossiê). Minha posição a respeito é conhecida, e não vou relatar que lhe disse, mas, em todo caso, tentei demovê-lo de fazer uma matéria com esse enfoque. Chamei sua atenção, por exemplo, para a informação que tenho do tal professor que colocou uma suástica na piscina, em Santa Catarina, que ele não é desse estado, mas veio de São Paulo, não possui sobrenome alemão... Como se vê pela matéria, ele persistiu, sem arredar um milímetro de seu pré-conceito. E aí seu texto virou uma clara instigação ao ódio étnico-racial contra os “alemães”. Na página 55, conta que no vale do Itajaí – onde mora e atua o tal de professor – havia nazistas nos anos 1930, levando-o a perguntar: “o passado ajudou a fortalecer um ideário nazista em Santa Catarina, onde as posições de Wander [o professor em questão] são toleradas e até mesmo idolatradas?” Na próxima frase, responde: “pelo menos uma pesquisa sugere que sim”. E aí requenta a intragável gororoba da destemperada da antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias, da qual falei na minha entrevista não publicada a GALILEU. Depois, conta mais algumas lorotas sobre “isolamento” etc. Como os “alemães” seriam responsáveis pelo “neonazismo” em Santa Catarina, Daniel Cassol, obviamente, vê a mesma maldade nos do Rio Grande do Sul. Na página 57, escreve: “No Rio Grande do Sul, outro Estado fortemente marcado pela imigração alemã, casos semelhantes ao de Wander são recorrentes”. E aí o rapaz dá um “barrigaço” que deveria levá-lo a repensar se quer continuar sendo jornalista. É que em 13 e 14 de abril de 2017 a imprensa gaúcha efetivamente noticiou um suposto caso de apologia do nazismo por parte de uma estagiária da PUCRS, num colégio público de Porto Alegre. Se esse menino tivesse levado minha fala com ele, no dia 26 de julho, minimamente a sério, e dado ao menos uma olhada no meu site, teria visto a “nota” A estagiária nazista, que naquele momento estava no topo da página, e tomado conhecimento de que a notícia foi desmentida pela polícia, no dia 19 de abril. Teria evitado o vexame que deu – ou não, pois o menino de GALILEU que me entrevistou e a quem referi, de forma expressa, esse falso episódio “neonazista”, mesmo assim, também o apresenta como verdadeiro (página 37, de GALILEU). A ambos só se pode recomendar a sabedoria dos antigos: “Oh si tacuissetis!”. [30/9/2017]

 

Com data de 18/12/2017, recebi e-mail do responsável pelo dossiê na revista SUPERINTERESSANTE que, entre outras coisas, diz: "De fato, o senhor tem razão: o inquérito havia sido encerrado quando a matéria foi finalizada. Checamos com a delegacia e descobrimos que o delegado Paulo César Jardim decidiu pela inimputabilidade da estagiária por entender que não era um caso de polícia, mas um caso clínico". "Já pedimos para a SUPERINTERESSANTE publicar a correção. Sei que talvez não seja o suficiente para reparar o erro, mas é o que podemos fazer". Sinto-me imensamente satisfeito, porque minha luta absolutamente solitária contra a barbárie da indústria do "neonazismo" produziu mais um pequeno fruto.