Na década de 1980, tive um incidente de trânsito com dois soldados da Brigada Militar. Escrevi uma carta ao comandante do batalhão a que pertenciam – sem resposta. Reiterei-a – idem. Fiz a mesma coisa com o comandante-geral, com resultado idêntico. Fui, então, ao Palácio Piratini, e ali registrei, em livro disponível para qualquer cidadão, minha demanda. Poucos dias depois, um coronel da BM fez contato comigo. Aquilo que impressionou no caso foi o fato de que, na conversa do coronel, ficou claro que eu fora considerado um cidadão tão exótico – por persistir, durante meses, numa demanda – que, para saberem quem sou, haviam sido acionados os serviços de informação das forças armadas (o coronel sabia meu posto militar) e, provavelmente, os serviços de informação da OTAN (eu tenho um título acadêmico obtido num país da OTAN, o qual, naquele momento, não estava revalidado e registrado perante autoridades brasileiras – mas o coronel sabia que sou portador desse título).
Fico imaginando o nível em que está a vigilância sobre minha pessoa, depois que, algumas semanas atrás, foi divulgada uma “infiltração ucraniana” no “neonazismo” gaúcho. Não tenho notebook, celular e outros aparelhos do gênero, apenas um tradicional computador de mesa – na dúvida, colei um esparadrapo sobre a abertura da câmera pela qual falo ao Skype. [Atenção, serviços de informação, para que não percam seu precioso tempo, caso tenham descoberto algum celular em meu nome, lembro que, anos atrás, veio um estudante alemão em intercâmbio, para a universidade, e ele queria comprar um chip de celular, mas não tinha CPF - fui com ele até a empresa de telefonia e registrei a compra em meu nome. Esse número, provavelmente, nunca foi cancelado, e podem até existir outros].
Poucos meses atrás, um jornalista da Globo conversou comigo sobre nazismo/“neonazismo” (desistiu da matéria que pretendia fazer, depois da nossa conversa). Lá pelas tantas, me perguntou há quanto tempo tenho cidadania alemã. Ficou muito espantado quando lhe disse que não a possuo. A seguir, lhe perguntei se ele imaginava que Angela Merkel deposita, a cada mês, alguns milhões de euros em minha conta, para ficar dizendo por aí que o “neonazismo” no Rio Grande do Sul não é bem assim como se lê e ouve na imprensa, que os responsáveis não são os “alemãos” gaúchos? Ele abriu um sorriso muito amarelo, e, de forma sincera, confessou que conhece gente que está convicta disso (que Merkel me paga). Imagine-se agora, com essa perigosíssima “infiltração ucraniana”, e todo mundo sabendo que meus quatro avós foram ucranianos (ainda que entrados no Brasil como cidadãos russos, porque, na época [1909], a Ucrânia fazia parte da Rússia).
Interessante é o seguinte: em 22 de novembro de 2016, o Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul comunicou, formalmente, que “não se tem ciência de indícios ou provas de que os responsáveis por eventuais manifestações ou atos de racismo, nazismo, ‘neonazismo’ ocorridos no Rio Grande do Sul, até a presente data, são necessariamente descendentes de alemães, italianos ou poloneses deste estado” (para acessar o documento, clicar aqui). Com isso, a tradicionalíssima prática de culpar o “perigo alemão” (em primeiríssimo lugar), o “perigo gringo” e o “perigo polaco” (enfim, os "coloninhos") por absolutamente todos os supostos ou efetivos males deste estado perdeu um pouco de seu charme. Mas eis que, apenas duas semanas depois, na manhã do dia 8 de dezembro, ao verificar o noticiário da imprensa estadual, pôde-se ler que a polícia civil gaúcha desencadeara uma megaoperação contra um grupo que estaria envolvido numa “infiltração ucraniana” no “neonazismo” gaúcho.
A importância que se atribui a esse episódio pode ser avaliada pelo fato de que o jornal Zero Hora, em sua edição do final de semana de 14/15 de janeiro de 2017 dedicou, além da capa, 9 (nove!) páginas do encarte DOC ao tema – isso significa mais de um terço do caderno, já que ele possui 28 páginas, mas três delas foram ocupadas por publicidade. Cabem alguns comentários em relação a essa publicação – tanto em relação àquilo que foi dito (escrito) quanto em relação àquilo que faltou dizer (escrever). Claro, meus comentários são específicos sobre aquelas partes do texto que se referem ao “neonazismo” no estado.
- Há muitos anos, a autoridade que liderou a ação da polícia civil gaúcha em 8 de dezembro de 2016 afirma que estão identificados e são monitorados 35 (trinta e cinco!) “neonazistas”, por aqui. Na matéria de Zero Hora, se afirma: “cerca de 50 extremistas no Rio Grande do Sul são monitorados pelas autoridades” (p. 6). Isso significa que não houve nenhum crescimento estrondoso. Nesse sentido, faltou dizer aos leitores que esse número representa 0,0005% (zero vg. zero, zero, zero, cinco por cento) da população gaúcha; ou, em outro tipo de cálculo: entre cada 200.000 gaúchos há, em média, 1 (hum!) “neonazista”. É preciso reafirmar aquilo que já escrevi em outro lugar: o “neonazismo”, neste estado, é um caso de polícia – não de política, e muito, muito menos de “etnia”.
- Quanto às fontes da matéria – em termos de pessoas entrevistadas –, também há problemas. O único pesquisador entrevistado com real conhecimento de causa sobre “extremismo” no Brasil foi o professor Odilon Caldeira Neto. Foi dele a afirmação mais sensata de toda a reportagem: “É equivocada qualquer associação entre a imigração alemã e a formação de grupos neonazistas, como se os descendentes europeus fossem automaticamente adeptos do nacional-socialismo” (p. 7). Claro, sou suspeito em elogiá-lo, pois escrevi a “orelha” do livro em que publicou sua dissertação de mestrado. Mesmo assim, quero destacar outra frase certeira dele: “O que ocorreu é essa atribuição, por parte dos militantes da extrema-direita, à imaginação de uma condição social (superior) do território do Rio Grande do Sul” (p. 7). Posso até imaginar que tenha comentado com ele, nesse sentido, o famigerado caso do professor que lá em Santa Catarina colocou uma suástica no fundo de sua piscina – não se trata de uma pessoa que tivesse nascido, se criado naquele estado, e herdado a tradição nazista/”neonazista” do bisavô, e, sim, de um paulista, que certamente imaginou que em SC havia uma “raça superior”, e, por isso, se mudou para lá.
- Continuando com as fontes, não conheço o professor Fabiano Mielniczuk [caso tenha sido meu aluno, peço mil perdões pela minha amnésia!], mas há motivos para imaginar que ele tenha sido prejudicado pela forma como seu nome foi incluído no texto. Consultei seu Currículo Lattes, e verifiquei que ele está amplamente habilitado a dar informações e a opinar sobre a situação internacional, a situação na Europa, com ênfase no leste europeu, mas não encontrei nada que o mostrasse como conhecedor de escravidão no Brasil ou no Rio Grande do Sul e do processo de imigração/colonização com imigrantes alemães. Isso me leva a suspeitar que suas informações sobre o primeiro tema foram pouco exploradas no texto (ao menos com referência direta ao seu nome), tendo sido aproveitadas, em contrapartida, suas observações puramente “palpiteiras”, de senso comum, sobre o segundo tema – e nesse sentido, sua imagem talvez tenha sido prejudicada, pois as manifestações que lhe são atribuídas em relação ao "neonazismo" no estado não são de todo edificantes. A situação fica ainda mais complexa pelo fato de que, após a reprodução literal (entre aspas) de uma fala sua, vem um parágrafo sem aspas, aparentemente redacional, mas supostamente reproduzindo seu pensamento: “Isso não significa que o descendente de europeu é apoiador de causas supremacistas por natureza, mas ele pode estar mais propenso a esse tipo de atitude, sobretudo em épocas de crise” (p. 7). Aqui, se está diante de uma afirmação “politicamente correta”, no início, mas que depois desanda para o mesmo rumo de uma autoridade que, tempos atrás, desencadeou uma “desneonazificação” no vale do rio Taquari, por ter considerado que pessoas originárias de “colonização germânica” possuem uma “tendência” (propensão?) ao “neonazismo” (voltarei a esse caso). Tenho certeza de que o professor Fabiano Mielniczuk não gostaria de aparecer, no futuro, como mentor intelectual de um novo episódio do mesmo calibre!
- Lamentável foi a inclusão desse indivíduo chamado Jair Krischke para falar sobre “neonazismo” no Rio Grande do Sul. Ninguém nega méritos a esse indivíduo na luta por Direitos Humanos, desde, no mínimo, o caso Lilian Celiberti e Universindo Diaz, mas ele deve sofrer de gravíssimos traumas de identidade, pois sempre que fala de “neonazismo” é um desastre. Esse indivíduo já atribuiu a violência “neonazista” no estado, de forma expressa, aos “alemães” [para ver, clicar aqui], e pior, estabeleceu um link entre “neonazismo” e as pessoas super humildes lá do Morro Reuter retratadas por Rejane Zilles em seu filme Walachai – para quem está de posse de suas faculdades mentais, é de vomitar! (aos leitores que sabem alemão, eu diria: “das ist zum Kotzen!”). E eis que esse indivíduo está novamente ali para falar das festas promovidas por nazistas “no final dos anos 1930”, além disso, a foto, na mesma página 7, deve ter sido colocada em homenagem a essa sua afirmação – de fato, gostaria de saber se esse indivíduo tem conhecimento histórico (diz-se que é “Dr.” em História) sobre o contexto daquelas festas, e se ele pode apresentar um único caso de um “neonazista” atual que seja neto ou bisneto de um nazista “dos anos 1930”, para mostrar que há uma linha de continuidade entre os episódios. O fato de sua fala ter sido colocada depois da do professor Odilon – que fez um esforço de “desconstrução” de preconceitos – piora a coisa, pois deve ter neutralizado esse esforço, na mente de muitos leitores.
- Cabe também uma observação em relação à cronologia do “neonazismo” no Rio Grande do Sul, apresentada na página 13. Ali se diz – sem QUALQUER referência crítica! – que Adriana [Abreu Magalhães] Dias publicou, em 2013, um estudo em que afirma que Santa Catarina abriga metade dos “neonazistas” brasileiros (45.000), ficando o RS em segundo lugar, com 42.000 (na verdade, essa afirmação foi feita numa entrevista, que foi reproduzida por muitos milhares de órgãos de imprensa brasileiros) (http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/04/mapa-da-intolerancia-regiao-sul-concentra-maioria-dos-grupos-neonazistas). O problema aqui é que essa referência reavivou a memória dos leitores e divulgou uma informação em relação à qual pessoas responsáveis, pessoas que praticam jornalismo responsável, deveriam manter distância, e isso pelas seguintes razões (que tangem tanto à pessoa de Adriana Dias quanto ao conteúdo): a) uma leitura atenta dos números mostra que eles não “fecham”; b) já na sua dissertação de mestrado (2007) a autora afirmou que em SC havia 45.000 “neonazistas”, representando a metade do Brasil; mas gera suspeita o fato de que na entrevista de 2013 ela mantenha esse número e o percentual em relação a SC, mas os dados que apresenta para o Brasil como um todo apontam para um crescimento de 55% – pergunto se a indicada estagnação total em SC, diante de um suposto ou efetivo crescimento enorme no restante do país, é convincente? c) na deplorável reunião de 13 de julho de 2009 da Comissão Externa da Câmara dos Deputados, requerida pela deputada Maria do Rosário Nunes, para investigar o “neonazismo”, realizada na Assembleia Legislativa gaúcha, o presidente da mesma, deputado Marcelo Itagiba, perguntou ao delegado Paulo César Jardim se havia “neonazistas” em SC; a resposta do delegado foi cristalina: "Nós temos alguns informes relativos a Santa Catarina, mas não com essa contundência dos outros estados" (essa afirmação está na página 57 da transcrição das falas – para ver, clicar aqui); ora, ora, ora, como a senhora Dias localiza metade dos “neonazistas” brasileiros em SC, e a polícia os desconhece por completo? d) a autora recorreu a serviços de informação para obter meu telefone privado, e, a seguir, invadiu minha privacidade; e) no meu livro O neonazismo no Rio Grande do Sul (p. 35-70) transcrevo, de forma extensa, o destempero com que essa senhora se referiu à minha pessoa e às minhas ponderações, em texto escrito (mais tarde, ela eliminou esses textos de seu blog, mas eu tenho cópia impressa, e posso mostrar a quem tiver interesse); f) a senhora Adriana Dias ingressou em 2008 no doutorado em Antropologia da UNICAMP – na data de hoje (19/1/2017), 9 anos depois, seu Currículo Lattes não registra a conclusão desse curso. Diante desses seis argumentos, pergunto se denota responsabilidade jornalística divulgar – sem QUALQUER comentário crítico! – os números sobre “neonazismo” apresentados por essa senhora?
- Agora um caso de uma lamentável ausência na cronologia apresentada: em agosto de 2010, foram pichadas suásticas ao longo de uma rodovia que atravessa o município de Teutônia. Apesar de o delegado local, Mauro José Barcellos Mallmann, e o delegado Paulo César Jardim terem enfatizado, através da imprensa, que a população local não tinha nada a ver com isso, um agente de Estado desencadeou uma humilhante “desneonazificação” em todo o vale do rio Taquari, que se estendeu por quase dois anos (entre várias outras matérias neste site, tratei do assunto em “O retorno ao ‘retorno do neonazismo a Teutônia’” e “Carta-aberta ao Subprocurador-Geral da República Hindemburgo Chateaubriand Filho”). Mais uma vez, pergunto se a responsabilidade jornalística não sofreu arranhões diante da rememoração dos dados da senhora Adriana Dias (que não estão livres de suspeitas!), por um lado, e do silêncio absoluto frente a um erro brutal provocado pela intempestividade de senso comum para apontar e combater responsáveis pelo suposto ou efetivo “neonazismo”, por outro lado – mesmo que os jornalistas da matéria de Zero Hora não tenham conhecido meu site, é inadmissível que tenham se colocado a escrever a longa matéria de que estamos tratando sem terem dado ao menos uma olhada no meu livro O neonazismo no Rio Grande do Sul (certamente, o único com esse título!), onde trato desse caso (p. 106-125). Esse episódio foi lamentabilissíssimo (!), e não pode ser omitido em nenhuma cronologia responsável sobre "neonazismo" no Rio Grande do Sul!
- Concluindo, um jornalismo responsável, sobretudo quando se quer investigativo, também deveria dar uma olhada naquilo que têm a dizer pesquisadores “não ortodoxos”, que, eventualmente, “remam” contra a corrente massacrantemente dominante – no presente caso, isso teria ajudado a evitar alguns senões da matéria! [19/1/2017]