Estatística é uma área científica muito importante. Através dela, podemos saber qual a probabilidade de nosso candidato eleger-se nas próximas eleições, qual a probabilidade de nosso time conseguir uma vaga na Libertadores ou ser rebaixado para a série B. Mesmo não permitindo uma previsão absolutamente segura do futuro, ela pode indicar aos governos quantos aposentados deverão ser atendidos pela Previdência daqui a 20 anos. Através de modernas máquinas calculadoras, grandes levantamentos estatísticos podem ajudar a estabelecer relações de causa e efeito – assim, pode-se constatar, por exemplo, que entre populações de baixo consumo de sal há menos infartos do coração. Neste caso, os estatísticos falam de uma “correlação” entre nível de consumo de sal e infarto.
Na década de 1970, fiz duas disciplinas de estatística, e numa delas aprendi que, às vezes, ocorrem falsas “correlações” ou “correlações espúrias”. Na aula, citou-se o seguinte exemplo: o fato de que 98% das pessoas em quem se constata câncer de pulmão sejam fumantes não significa que o cigarro seja o responsável. O responsável pode ser o fósforo com que se acende o cigarro. (Prezados leitores, este é um exemplo fictício – obviamente, o cigarro causa câncer, sim). Esse exemplo visa a mostrar que existem situações em que uma aparente e tacitamente aceita “correlação” estatística entre causa e efeito pode não ser verdadeira. No presente caso, o caráter espúrio da “correlação” entre câncer e cigarro restaria confirmado se entre os fumantes que o acendem com isqueiro se constatasse a ausência total da doença.
As considerações acima foram motivadas por duas matérias publicadas em encartes do Correio do Povo de 15 de outubro de 2016, ambas abordando, de alguma forma, o racismo. A primeira refere-se ao racismo no futebol (no encarte “+Domingo”, intitulada “Um título nada desejado”, assinada por Carlos Corrêa, p. 6-7), e é aí que entram em jogo relações de causa e efeito. A matéria trata de um relatório do Observatório da Discriminação Racial, que aponta o Rio Grande do Sul como campeão de atos de racismo no futebol brasileiro, incluindo um crescimento de cinco casos em 2014 para nove casos em 2015. Ao final da matéria, que apresenta e comenta o citado relatório, aparece um “box” sob o título “Casos não estão apenas na Serra” – e é em relação a ele que tomo a liberdade de tecer alguns poucos comentários. Tempos atrás, publiquei, neste site, uma nota intitulada “Viva a imprensa livre – e responsável!”, na qual critiquei o autor de uma matéria sobre discriminação por não ter visto que os dados por ele mesmo apresentados não confirmavam suas conclusões. Nesse sentido, cabe um voto de louvor ao autor da matéria do Correio do Povo – ele enxergou esse problema, a pequena crítica que lhe faço é que poderia ter avançado um pouco mais.
Vamos ao texto do “box”. Nele se lê aquilo que é senso comum absoluto: “Entre as explicações mais frequentes [para o racismo no futebol], aparecem fatores culturais, como as colonizações italiana e alemã”. Essa frase do autor da matéria é seguida de uma manifestação de autoflagelação do presidente do Esportivo de Bento Gonçalves, Guilherme Salton: “Vou dizer o quê? É um pouco da cultura do italiano”. Mas aí volta o jornalista, demonstrando espírito crítico: “A Serra Gaúcha, aliás, é citada quase sempre quando se fala de episódios racistas no futebol, o que evidencia uma meia verdade”. A seguir, admite dois casos graves na Serra: o do zagueiro Antônio Calos Zago, do Juventude de Caxias do Sul, em 2006, e a agressão por parte de torcedores do Esportivo ao árbitro Márcio Chagas da Silva, em 2014.
Destaca, porém, que é “Porto Alegre [que] lidera o relatório, com três ocorrências (...) e Pelotas vem logo atrás com outras duas”, para concluir: “Ou seja, sim, uma parcela dos torcedores da Serra tem se mostrado racista. Mas, queira ou não o restante dos gaúchos encarar o fato, tais torcedores estão longe de ser uma exceção”. Em relação a Pelotas, alguns anos atrás li com estudantes meu texto “Considerações sobre opiniões e estudos em torno de nazismo e ‘neonazismo’ no Brasil”, onde trato de matérias jornalísticas exatamente sobre racismo e futebol na “colônia alemã” (p. 27-29). Um estudante nascido e criado em Pelotas, militante do movimento negro (hoje professor na UNIPAMPA), disse que aquilo que o jornalista da matéria por mim analisada apresentava como episódios típicos da “colônia alemã” acontecia em absolutamente todos os jogos do clássico Brasil x Pelotas, sem que uma única pessoa de sobrenome alemão estivesse no estádio.
Dito isso, e reafirmando o reconhecimento pela tentativa de manter objetividade por parte de Carlos Corrêa, permito-me indicar algumas coisas que poderiam ter sido melhores, no seu texto – claro, sei das limitações de espaço a que, certamente, teve de submeter-se. Mas a matéria poderia ter chamado atenção, por exemplo, para o fato de que – apesar do sobrenome italiano – Antônio Carlos Zago não é nenhum caxiense “típico” (nasceu em São Paulo, jogou em vários times, inclusive no exterior); nos episódios racistas no estádio do Grêmio houve, no mínimo, um negro que foi indiciado; nos demais casos acontecidos na “colônia”, os culpados são efetivamente todos “italianos” e “alemães”?
Por último, uma referência a um dado que o autor da matéria não tinha obrigação de abordar, mas que é, no mínimo, “interessante”. Em 2013, uma doutoranda em Antropologia da UNICAMP, Adriana Abreu Magalhães Dias (essa senhora entrou no doutorado em 2008, e até hoje, 16/10/2016, seu Currículo Lattes não registra a conclusão do curso), deu uma bombástica entrevista afirmando que metade dos “neonazistas” do Brasil encontra-se em Santa Catarina. A matéria teve enorme repercussão, e foi reproduzida em milhares de órgãos de divulgação deste país, incluindo os de grandes e sérias universidades. O estado é considerado o mais “germânico” do país, e, mesmo não havendo estatísticas oficiais a respeito, deve ser, efetivamente, aquele com maior percentual de população de origem alemã, fato que leva o senso comum a aceitar esse tipo de afirmação sem qualquer espírito crítico. Como mostrei na nota “O banzé da indústria do ‘neonazismo’”, autoridades policiais desconhecem essas hordas de “neonazistas” naquele estado. E a matéria sobre racismo no futebol de que estamos tratando apresenta um quadro estatístico de vários estados. Por ele, se vê que – se para o Rio Grande do Sul foi registrado um total de 14 ocorrências racistas em 2014 e 2015 – Santa Catarina registrou um total de 3 casos, empatado com a Paraíba. Portanto, aqui não se confirma uma “correlação” estatística entre densidade de população de origem alemã/italiana e racismo no futebol. Se esse fato tivesse sido referido na abordagem do suposto racismo de “alemães” e “italianos”, a contribuição da matéria para desmistificar o senso comum teria sido ainda mais significativa. Mas repito: dentro de um mar de jornalismo irresponsável, a matéria de Carlos Corrêa merece elogios!
Por fim, uma palavra a respeito da entrevista com Muniz Sodré, no encarte CS (Caderno de Sábado), p. 4. Perguntado sobre o racismo no Brasil, disse: “[Existe] até na Bahia, que tem uma população negra enorme, e talvez seja mais racista que o Rio Grande do Sul. Quando menino, fui contínuo de banco na Bahia. O diretor da agência não deixava que negro tocasse no seu aparelho de telefone. Tinha nojo. Limpava com álcool. Conheci gente em Salvador que fervia fruta tocada por negro. Esse preconceito a elite baiana ainda tem”. Essas palavras não requerem qualquer comentário – apenas uma manifestação de esperança para que se venha a discutir de forma racional sobre o problema do racismo no Rio Grande do Sul, incluindo a discussão sobre a “tese do álibi”, segundo a qual, se existe racismo por aqui, os únicos responsáveis são os “alemães” e os “italianos”. Óbvio, eliminar essa tese da mente do senso comum exige um processo de longuíssimo prazo, mas o fato de que ela seja difundida por doutores em Antropologia, Sociologia e outras Ciências Humanas sugere que os japoneses não estão de todo errados quando estão pensando em banir essas disciplinas da universidade. [16/10/2016]