Jaime Pinsky é um historiador de méritos reconhecidos. Jaime Pinsky é diretor-editorial da Editora Contexto. Isso explica por que essa editora publicou livros fundamentais, de alto padrão científico, para a área de História. Essa tradição, porém, sofreu um aparente solavanco com a publicação recente (2015) de Operação Brasil: o ataque alemão que mudou o curso da Segunda Guerra Mundial, de autoria do tenente-coronel Durval Lourenço Pereira. Não há informações de que o autor seja graduado ou pós-graduado em História, e ele não possui Currículo Lattes.
O livro se ressente de alguns requisitos básicos do usual cânone exigido para escrever História. Abstraindo da situação menos frequente de que alguém se ponha a escrever sobre determinado tema histórico simplesmente porque nunca foi escrita uma linha sobre ele, o tradicional cânone historiográfico exige, no mínimo, mais ou menos os seguintes passos: 1) estudo minucioso e explicitação de tudo aquilo que foi escrito (dito, mostrado, cantado, pintado), até então, sobre determinado tema, apontando eventuais lacunas, falhas, contradições; 2) historiadores mais geniais e intuitivos, muitas vezes, podem, a partir da análise desse próprio material, propor soluções para as lacunas, falhas e contradições detectadas; 3) historiadores normais, menos geniais, dependem, para avançar, da garimpagem, muitas vezes trabalhosa, de novas fontes, com as quais, então, tentam sanar, de forma total ou parcial, as deficiências apontadas no primeiro passo.
Naquilo que tange à inserção do Brasil no contexto internacional dos anos 1930/40, o livro de Durval Lourenço Pereira não consegue atender, de forma satisfatória, ao primeiro passo. Ele não arrola alguns trabalhos clássicos sobre o tema, com presença de mais de 30 anos no mercado livreiro. Para exemplificar, cito apenas três autores ausentes: Gerson Moura, Ricardo Seitenfus e Stanley Hilton (é verdade que este último é citado, mas apenas a biografia sobre Osvaldo Aranha). Por essa razão, pode-se até desrecomendar a leitura da primeira seção do livro, intitulada “A ameaça totalitária”.
Por mais plausíveis que possam parecer hipóteses, teses, teorias, o historiador Reinhart Koselleck proclamou o incontornável “direito de veto” das fontes. Significa que, por mais “logicamente fechado” que um transcurso histórico se apresente, fontes que apontem para outra direção se impõem como tais. E é aí que passa a merecer referência a outra face de Operação Brasil. Seu autor dedicou-se, com muito afinco, a reunir fontes. Depois da primeira seção – cuja leitura acabo de desrecomendar –, são apresentados, basicamente, conteúdos derivados das fontes pesquisadas pelo autor.
Muito resumidamente, Pereira afirma que, em 1942, os norte-americanos estavam “doidos” para fincar pé no Nordeste brasileiro, um passo importante para a estratégia de combate ao Eixo. Tanto Vargas quanto os principais chefes militares resistiam em ceder aos americanos, de forma que as coisas estavam bastante emperradas. O nó górdio só foi desatado depois que, em maio, ataques a submarinos do Eixo, por aviadores brasileiros, levaram alguns setores alemães a preparar uma retaliação, que levou o nome de “Operação Brasil”. Mesmo que ela não tenha sido concretizada, ao menos nas dimensões originalmente planejadas, a partir de 15 de agosto ocorreu uma nova onda de afundamento de navios brasileiros, próximo à costa, fato que causou a morte de centenas de civis, incluindo mulheres e crianças. A comoção nacional que esse ato provocou obrigou o governo brasileiro a declarar guerra à Alemanha, e a, finalmente, ceder o Nordeste aos americanos. Ao contrário da visão corriqueira de que esses ataques fizeram parte de uma estratégia de longo prazo, estabelecida pelo próprio Hitler, para provocar uma guerra com o Brasil, a fim de poder invadi-lo, Pereira afirma que a iniciativa e a responsabilidade pela operação foram, sobretudo, da marinha de guerra alemã, e os afundamentos, em específico, derivaram de uma liberalidade por ela concedida ao capitão do submarino U-507, Harro Schacht. De quebra, o autor levanta a hipótese de que se Schacht não tivesse se afastado da área de atuação que lhe fora originalmente designada, no Atlântico, mas mais afastada da costa brasileira, provavelmente teria localizado e afundado um carregamento estratégico decisivo dos americanos destinado aos seus aliados, carregamento que – ao chegar incólume ao seu destino – reverteu a tendência da guerra, contra a Alemanha. Em resumo: se Schacht não tivesse aprontado aquilo que aprontou, o Brasil não teria entrado na guerra, o Nordeste não se teria transformado no “trampolim da vitória” aliada, e, possivelmente, a Alemanha teria dominado o mundo.
Em 1942, outro tenente-coronel, Aurélio da Silva Py, então na qualidade de chefe de polícia do Rio Grande do Sul, havia publicado um livro com tema relacionado: A 5ª coluna no Brasil: a conspiração nazi no Rio Grande do Sul. Esse livro afirma que desde, no mínimo, a criação do império alemão, em 1871, havia um plano bem concreto para conquistas territoriais no Brasil; que Hitler defendeu a retomada desse plano, e que as ações para sua concretização estavam em pleno andamento. Esse plano contaria com a ajuda de uma tropa que – no Brasil todo – se calculava em cerca de um milhão de cidadãos de sobrenome alemão, já desembarcados no país como soldados de Hitler, todos fanaticamente empenhados na tentativa de preparar o desembarque do próprio Führer por aqui – eram os chamados “quinta-colunas”. Muitos deles teriam se deslocado para o litoral, a fim de, à noite, com lamparinas de querosene, sinalizar aos submarinos alemães os melhores e mais seguros lugares para o desembarque, e consequente invasão do Brasil. Os próprios navios brasileiros teriam sido afundados com base em informações fornecidas por “quinta-colunas” localizados em terra.
Esse livro – e textos assemelhados – continua sendo utilizado como fonte para o tema. Não muito tempo atrás, um procurador da República cismou que o vale do rio Taquari, no Rio Grande do Sul, estava infestado de “neonazistas”. Recorreu à ajuda de uma técnica pericial em Antropologia, do próprio MPF, a qual elaborou um “laudo” que parte das afirmações do tenente-coronel Py de que toda a população de sobrenome alemão era fanaticamente nazista, nos anos 1930/40, para sugerir que, por consequência, seus netos, hoje em dia, são todos eles (ela escreveu “o conjunto dos concidadãos”) animais “neonazistas”. O procurador da República acolheu esse “laudo”, e desencadeou uma campanha de “desneonazificação” na região [quem quiser saber detalhes pode clicar aqui].
Convém enfatizar que não estamos diante de manifestações e atos de pessoas jurídicas comuns, da voz das ruas, mas sim de agentes de Estado (!). E não se trata de barnabezinhos de salário mínimo. O procurador é mestre em Direito, e, segundo informação fornecida pelo MPF em Brasília, seu vencimento básico (básico!), em 2 de agosto de 2012, era de R$ 22.911,74 (vinte e dois mil, novecentos e onze reais, e setenta e quatro centavos). O vencimento básico da técnica pericial em Antropologia era mais baixo, mas não se trata de uma técnica de nível médio – eventualmente egressa de uma escola municipal de Jacarezinho –, mas de uma doutora (!) em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela UFRGS! Se algum leitor estiver em dúvida se esses fatos se referem aos anos 1930/40 ou não, recomendo que se belisque, para dar-se conta de que não está sonhando, e diga em voz alta: “isto aconteceu na segunda década do século XXI!”.
Cito esse fato só para mostrar como os efeitos de livros como o do tenente-coronel Py sobrevivem com seu conteúdo inabalado. Foi essa a minha principal motivação para ler o livro deste outro tenente-coronel, Durval Lourenço Pereira. E não há dúvida de que ele traz algumas contribuições para o tema (não o “neonazismo”, mas o nazismo). Cito alguns poucos: 1) Como já haviam apontado, no mínimo, os historiadores acadêmicos Cesar Campiani Maximiano e Ana Paula Iervolino, a narrativa sobre a história em pauta não pode esquecer a presença significativa de cidadãos de sobrenome alemão na Força Expedicionária Brasileira, e o tributo de sangue que vários deles pagaram. Segundo Pereira, no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, “entre as centenas de lápides de mármore branco, dezenas estão gravadas com sobrenomes comuns aos alemães” (p. 51). 2) Espero ainda ter tempo para avaliar um arquivo que me foi recentemente revelado de um alemão que veio ao Brasil após a Primeira Guerra, e que nos anos 1930/40 entrou em confronto com nazistas. Esse alemão era primo de Hermann Rauschning, o famoso autor de um livro em que está a única (!) referência de que Hitler teria tido planos de conquista territorial no Brasil. O livro foi desmascarado como fraude, mas também continua sendo citado como fonte que merece crédito. O tenente-coronel Pereira não se refere a Rauschning, mas escreve: “descartadas as teorias conspirativas, jamais foi encontrado um plano ou mesmo um esboço de uma invasão do Eixo às Américas” (p. 97) (afirmação que se junta a de historiadores internacionais tão reconhecidos, sobre o tema, quanto Ian Kershaw). 3) Em função do livro do tenente-coronel Py e de outros, até hoje está muito difundido o folclore sobre atos de espionagem praticados por “coloninhos” pobres e desgastados pelo trabalho, das picadas mais remotas do interior do “sul” do Brasil, que teriam indicado aos submarinos alemães as rotas dos navios brasileiros afundados. Quem está de posse de suas faculdades mentais, e possui um mínimo de bom senso, já poderia ter verificado, na relativamente abundante bibliografia dos últimos anos, que nenhum desses navios partiu de Porto Alegre ou de Florianópolis. Agora o livro de Pereira faz uma análise minuciosa dos diários de bordo do capitão Schacht, mostrando que ele não teve qualquer ajuda “externa” – isto é, de terra firme – para localizar e afundar os navios brasileiros. 4) O livro também reduz a própria “Operação Brasil” a suas verdadeiras dimensões, diante de exageros em circulação – alguns deles difundidos por historiadores de renome. Neste sentido, o conhecido historiador acadêmico Chico Carlos [Francisco Carlos Teixeira] “contou que em suas pesquisas descobriu que Hitler exigiu o bombardeio ao Rio de Janeiro, logo após Vargas declarar que o Brasil entraria na 2ª Guerra Mundial ao lado dos aliados. Segundo Francisco Carlos, os alemães chegaram a enviar uma ‘matilha’ de submarinos para o Atlântico, contra a vontade e os conselhos do ex-embaixador alemão no Rio, mas que por sorte foi desviada para afundar um navio de mantimentos que seguia para a Inglaterra, pela costa africana” [http://www.revistadehistoria.com.br/secao/reportagem/hitler-exigiu-que-bombardeasse-o-brasil].
Em relação a esse episódio – que, efetivamente, envolveu planos de ataques a portos brasileiros localizados do Pará até Santos (São Paulo) –, o tenente-coronel Pereira não chegou a uma conclusão definitiva, mas desconfia que o próprio Hitler tenha suspendido a operação: “nunca ficou esclarecido de quem partiu a ordem para que a Operação Brasil fosse sustada, mas é provável que [o ministro das relações exteriores Joachim von] Ribbentrop tenha convencido o Führer a ordenar que a marinha interrompesse a progressão do ataque” (p. 215). Ainda que Andrea Helena Petry Rahmeier, segundo tese defendida em 2009 na PUCRS, também não tenha encontrado documentação que permitisse esclarecer em definitivo a suspensão da ação contra o Brasil, planejada pela marinha alemã, ela acabou atribuindo a responsabilidade a Hitler: “Ao final, Hitler desistiu da ação, em função do contexto político com a Argentina e o Chile” (p. 352). A referência à Argentina e ao Chile significa que Hitler teria feito uma avaliação realista sobre perdas e ganhos, concluindo que um ataque ao Brasil poderia abalar a neutralidade dos dois outros países. Isso, no mínimo, indica que, para ele, era mais importante manter a América Latina fora do conflito, do que tentar invadi-la e ocupar seu território.
Em conclusão: mesmo que eu tenha iniciado a leitura de Operação Brasil de Durval Lourenço Pereira com alguma desconfiança, acabei convencido de que se trata de um livro que representa uma contribuição válida para a historiografia brasileira – por que não internacional? [1/3/2015]