A erudição protege de descobertas inéditas” (Hermann Heimpel)

 

(mesmo que já tenha utilizado essa epígrafe em um artigo,

anos atrás, não posso deixar de repeti-la aqui).

[Foram acrescentadas ao texto, lá no final, uma réplica e uma tréplica].

 

Através da imprensa, tomei conhecimento da defesa de uma dissertação de mestrado sobre os negros em Cerro Largo, defendida em novembro de 2017, por Leandro Alexandre da Silva, sob o título Paisagens silenciosas: a invisibilidade do negro em Cerro Largo (RS), na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus daquele município. Não tendo conseguido encontrar o texto do trabalho, recorri à orientadora, professora Sandra Vidal Nogueira, a qual, gentilmente, o forneceu. Como uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado, após sua defesa e aprovação, se tornam “públicas”, no sentido de adquir, a rigor, o mesmo status de uma publicação em revista, livro ou outro meio, tornam-se também passíveis de avaliação crítica pública. Considerando que, numa entrevista disponível na internet [https://plus.google.com/+GersonRodrigues13/posts/cXXNDUxF6ax], o autor tivesse revelado que pode vir a fazer seleção para um doutorado, um comentário a seu trabalho de mestrado, inclusive, se justifica pela boa intenção de contribuir para o encaminhamento da retomada de estudos em nível mais elevado. As observações serão feitas na forma de “itens”, sem qualquer preocupação com uma hierarquia ou “lógica”, isto é, a ordem deles não reflete graus de importância atribuída. Propositalmente, abriu-se mão de apresentar referências elogiosas – os aspectos positivos da pesquisa são muitos, e eles até podem vir a ser referidos, de passagem, no texto, mas não receberão atenção específica. Isso só para não deixar a mínima dúvida de que se eu tivesse estado na banca teria aprovado a dissertação, assim como aqueles que a avaliaram o fizeram.

 

Para que aqueles leitores que não leram a dissertação – e presumo que seja a maioria – tenham ao menos uma ideia do conteúdo, aqui vai um resumo telegráfico: o município de Cerro Largo costuma ser apresentado como tipicamente “alemão”, mas, pelo censo demográfico do IBGE de 2010, cerca de 20% da população local se declararam “pretos” ou “pardos”. Partindo do pressuposto de que esse percentual é significativo (o mesmo censo registrou apenas 0,2% de “amarelos” e 0,02% de “indígenas”), o autor destaca a invisibilidade dessa população. Uma análise de vários indicadores o leva à conclusão de que essa população está, em alto grau, negativamente privilegiada, no contexto municipal. “Os dados censitários do IBGE confirmam essa existência, mas ‘o município não os enxerga’. Assim, surgiu nossa motivação, e esse é o problema ao qual nos propomos a resolver. Quais são as características do não-lugar do negro em Cerro Largo? E por que eles não são vistos?” (p. 10).

 

– Uma primeira observação é puramente bibliográfica. Se o autor tivesse consultado minha bibliografia neste site (para ver, clicar aqui), teria visto que já existe uma considerável produção sobre a presença de negros nas regiões de colonização alemã – concretamente, penso que teria sido bem útil consultar, por exemplo, a tese de doutorado em Antropologia defendida por Margarete Fagundes Nunes, na UFSC, em 2009, sob o título O negro no mundo alemão: cidade, memória e ações afirmativas no tempo da globalização. Quanto à população de origem alemã e a questão de sua identidade ou autoimagem, o autor recorreu aos textos de Giralda Seyferth. Em princípio, nada a opor – a entrementes falecida Giralda é “clássica” –, mas existe também uma tese de doutorado de André Fabiano Voigt, defendida, em 2008, na UFSC, chamada A invenção do teuto-brasileiro. Tanto Seyferth quanto Voigt são catarinenses, e suas fontes são, essencialmente, daquele estado. Acontece que a inserção de descendentes de alemães nos dois estados é bastante diferente – basta referir um aspecto do campo político, onde se constata que SC já teve, desde a proclamação da República, 11 (onze!) governadores titulares de sobrenome alemão, enquanto o RS não teve nenhum, zero (!) – isso sem referir o fato de que, mesmo quando um dos de lá possui um sobrenome “turco”, como Amin, pode estar convivendo, na alcova, com uma Heinzen. Por isso, teria sido útil dar uma olhada em duas teses específicas ao RS: a primeira, de Sérgio Bairon Blanco Sant’Anna, chamada História palinódica (significações culturais de um regionalidade teuto-brasileira), defendida na USP, em 1991; e de Silvio Marcus de Souza Correa intitulada Zur ethnischen Identität der Deutschstämmigen in Santa Cruz do Sul/Brasilien (Sobre a identidade étnica dos descendentes de alemães em Santa Cruz do Sul/Brasil), editada pela UNISC, em 2001. Sim, sei das dificuldades de acesso – a primeira tem 880 páginas, não há arquivo eletrônico (sem falar do fato de que durante anos esteve proibida de ser xerocada, na biblioteca da USP), a segunda está em alemão, uma língua que mesmo alguém que se proponha a estudar os “alemãos” não domina, necessariamente. Por último, estranhei a ausência de qualquer referência ao livro Identidades rasuradas: o caso da comunidade afro-descendente de Santa Cruz do Sul (1970-2000), de Mateus Skolaude, que, mesmo não enfocando o tema exatamente na mesma perspectiva, possui muitas afinidades eletivas com o trabalho de Leandro Alexandre da Silva. Além de tudo isso, em 1998, Eugênio Gervásio Wenzel defendeu, na USP, uma tese em Antropologia intitulada Memória e identidade teuto-brasileira em Cerro Largo, Rio Grande do Sul.

 

– Uma parte muito interessante do trabalho consiste na análise da distribuição espacial de negros e brancos no cemitério local. O pesquisador constatou que esse espaço está dividido em quatro quadrantes, e que os túmulos de brancos estão concentrados nos dois à frente, enquanto os negros e pardos ocupam os quadrantes de fundo (ainda que, claro, também haja brancos nesta última área). O autor teve o cuidado de verificar se essa situação não derivava da cronologia – nos anos iniciais da colonização, a população era quase exclusivamente branca, e poderia ter ocupado os primeiros espaços, enquanto negros e pardos vieram mais tarde, motivo pelo qual poderiam ter sido enterrados mais ao fundo. A verificação das datas de enterramento, porém, mostrou que há sepultamentos antigos e recentes tanto no fundo quanto na frente. Não havendo grandes ressalvas a fazer a esta parte, quero, apenas, registrar algumas poucas observações que podem vir a ser úteis, numa eventual retomada da investigação. O autor estranhou o deslocamento dos luteranos para um cemitério localizado a alguma distância. Não possuo um conhecimento minucioso da história de Cerro Largo – por isso, corro o risco de dizer uma bobagem –, mas a colônia foi fundada em 1902, quando ainda existia o Bauernverein (Associação de Agricultores), que congregava católicos e luteranos. Em 1909, essa associação, porém, se dissolveu, e em 1912 foi criado o Volksverein (União Popular), expressamente católica. Com isso, poucos anos depois da fundação, a colônia de Serro Azul se tornou um empreendimento rigorosamente católico, fato que explica, inclusive, a condição de principal “celeiro de padres” do estado, que o município assumiu em anos posteriores. Dessa forma, os luteranos ficaram “sobrando”, pois havia – e há até hoje – uma tradição de separação entre cemitérios católicos e “evangélicos” (luteranos) pelas regiões de colonização alemã de todo o Rio Grande do Sul. E como cemitérios privados, eles cobravam taxas, de forma que a separação constatada pode, eventualmente, derivar menos de preconceitos étnico-raciais que de diferenças sociais (brancos ricos, por um lado, pagando mais caro pelos lugares mais à frente, negros e brancos pobres, por outro lado, ocupando os lugares mais baratos, ao fundo) – lembro que, nas décadas de 1950/60, meu pai pagava, anualmente, um Platzgeld, uma taxa de reserva de lugar, lá no cemitério de (Novo) Machado, mesmo sendo um cemitério público.

 

– Em minha opinião, teria sido útil uma tentativa de mostrar a origem da população preta/parda. Mesmo que – como o autor destaca – essas populações não tenham estado totalmente ausentes nas regiões de colonização alemã, desde o início, seu percentual atual, em geral, não deriva de um crescimento vegetativo, mas, sim, de algum tipo de migração. Eles vieram quando, por quê? Essa informação poderia ajudar a compreender sua inserção atual na comunidade local, inclusive a reação desta à sua presença. Tento ilustrar com dois exemplos – um hipotético, outro real. Hipotético é o caso de Teutônia, pois desconheço estudos sobre a inserção de negros nesta comunidade. Mas quando o município completou determinado número de anos de existência – um ano jubilar –, o então prefeito deu uma entrevista pela imprensa, destacando o grande desenvolvimento socioeconômico da comuna, informando sobre escassez de mão-de-obra. Os prefeitos de dois outros municípios – localizados relativamente longe dali – aproveitaram a “deixa”, passaram em um a um dos casebres em que vivia a população “marginal” de seus municípios, informando que à data tal, horário tal passariam ônibus pela região para arrebanhar pessoas que quisessem ir trabalhar em Teutônia, onde haveria empregos garantidos. Bastava arrumar a trouxinha, e comparecer – o ônibus seria gratuito. Consta que, certo dia, cerca de duas dezenas de ônibus lotados se dirigiram a Teutônia, com essa “carga”. Quando o prefeito se deu conta daquilo que estava acontecendo, chamou a polícia, mandou fechar todas as entradas da cidade, obrigando os ônibus a voltar às suas origens. Nos dias seguintes, podiam ler-se, na imprensa da Capital, ruidosos clamores para que fosse convocada uma nova sessão do Tribunal de Nurembergue, para julgar o prefeito “nazista” de Teutônia. Não está errado pressupor que ao menos uma parte desses migrantes tenham sido pretos e pardos – e que, pelas condições em que chegaram a Teutônia, tanto a comunidade local quando os próprios não se sentissem totalmente à vontade. Destaco, com toda ênfase, que esta última observação é puramente hipotética, uma derivação “lógica”, uma intuição, sem qualquer base em estudos sobre a inserção dos negros, mas plausível. Em contraposição, temos Santa Cruz do Sul. Aqui, sim, com dados concretos, com pesquisas. Este município possui uma tradição de economia dinâmica de longa data, e parte significativa dos pretos e pardos (e, claro, também de migrantes brancos) vieram atraídos por essa situação. No citado livro de Mateus Skolaude, o terceiro capítulo foi dedicado a um levantamento sobre vivências de preconceito/racismo por parte da população negra. O autor selecionou 16 negras/negros que estivessem morando, no mínimo, havia 10 anos no município, ou tivessem nascido ali. Ao contrário da expectativa do próprio pesquisador – uma grande inteligência (conheço-o pessoalmente), mas que, com certeza, não estava de todo imune à ideologia propagada, no mínimo, há cem anos de que brasileiros com sobrenome alemão são brutalmente racistas, por determinismo genético –, um(a) único(a) entrevistado(a) declarou ter sido vítima de preconceito ou racismo, em Santa Cruz do Sul (o próprio Mateus não revela isso no livro, só cheguei a esse número depois de uma demorada investigação para identificar o[a]s autore[a]s das diferentes falas, graças a uma tabela anexa; todas as afirmações que apontam para alguma vivência de preconceito/racismo foram feitas por uma mesma pessoa). Os 15 restantes declararam que não registram atos desse tipo contra si, em sua memória. Alguns até falaram com entusiasmo da opção em mudar-se para a cidade: “Para mim, é uma cidade que eu gosto demais. Já tive pelo Rio Grande afora, em vários lugares, entendeu, mas aqui é uma cidade que pra mim é muito boa” (p. 93). Para o Mateus, claro, esse resultado foi decepcionante, e ele “acusou” os próprios negros de serem portadores de uma falsa consciência: “Nas entrevistas com a comunidade afrodescendente, nota-se que houve, por parte dos sujeitos entrevistados, um processo de subjetivação acerca de valores naturalizados nas narrativas identitárias da região” (p. 134). Independente da opinião do autor, seu livro registra, objetivamente, a sensação daqueles que costumam ser pressupostos, com absoluta naturalidade, objeto de mau tratamento pela sociedade majoritária envolvente, isto é, dos “alemãos”. Por tudo isso, teria sido importante ter mais informações sobre as origens dos negros de Cerro Largo – talvez fornecessem elementos para uma maior compreensão daquilo que está acontecendo ali.

 

– O autor apresenta dados do IBGE que demonstram as diferenças na qualidade de vida entre brancos e negros, em Cerro Largo. Em determinado momento, refere-se ao IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), um indicador que “resume” essa qualidade de vida, ou faz uma “média”. Em relação a esse ponto, também cabe uma breve referência. Muitos anos atrás, o professor Marcelo Paixão, da UFRJ, citado pelo Leandro, me enviou os números do IDH derivados do Censo do ano 2000 de todos os municípios gaúchos, desagregando os índices entre brancos e negros. Tentei fazer novo contato com o professor, mas ele está licenciado da universidade – e eu próprio não consegui localizar os dados do censo de 2010 na forma desagregada. Penso, porém, que poderia ter sido útil fazê-lo, pois a própria dissertação fala do crescimento constante do IDH “global” do município, e, sem dúvida, seria importante verificar se isso acontece também em relação aos negros, se a diferença em relação aos brancos está diminuindo, ou se, pelo contrário, continua igual, ou até está aumentando.

 

– Com essa observação, passo a alguns comentários que denotam ressalvas um pouco maiores e mais gerais, “estruturais”, da dissertação. E a principal questão, aqui, são as reiteradas passagens no texto em que o autor se refere em tom desabonador à condição de Cerro Largo como município de “alemãos”, dando a impressão de que ela é a “variável independente”, o fator explicativo para tudo aquilo que está acontecendo (o substantivo “alemãos” não está na dissertação; devo o copyright ao escritor Luís Augusto Fischer – ainda que ele nunca tenha conseguido indicar-me o singular desse plural; quando eu tratar da terminologia discutida na dissertação para denominar os habitantes de que se está falando, espero ficar mais clara a justificativa para a utilização dessa expressão). E dentro desse aspecto – ao qual vou voltar –, de posse dos dados do IDH de brancos e negros referentes a 2000, escrevi, na época (no arquivo em meu pen drive, consta que a última modificação ocorreu em 25/5/2007), um texto que acabei não publicando, com receio de que pudesse vir a ser mal interpretado. Mas, entre outras coisas, constatei que, naquele ano, o IDH de Cerro Largo apresentava uma diferença de 123 pontos entre o dos brancos (0,831) e o dos negros (0,708). Se agregarmos a esse dado o de Selbach (o segundo IDH mais alto do estado para brancos), com uma diferença de 202 pontos em relação aos negros (0,889 x 0,687), o senso comum estará convicto de que essa realidade deriva da maldade geneticamente inata aos “alemãos”, pois ambos são municípios típicos de colonização alemã. Minha investigação, porém, não parou aí, fui ver o IDH de brancos e negros em todos os municípios do RS. E aí constatei algumas coisas bem interessantes, entre elas, o fato de que o município com o maior índice de IDH para negros chama-se Bom Princípio, a Winterschneis, terra dos moranguinhos, com uma diferença entre brancos e negros de “apenas” 35 pontos (0,832 x 0,797). Na época, eu estava muito interessado nos dados publicados pela Confederação Nacional dos Municípios, que, durante toda a primeira década do século XXI, classificou São José do Hortêncio como município mais socialista do Brasil (escrevi alguma coisa sobre isso no livro Migrantes ao sul do Brasil, editado por João Carlos Tedesco e Maria Catarini Zanini). Também a Portugieserschneis não foi totalmente decepcionante, a diferença do IDH de brancos e negros foi de 55 pontos (0,802 x 0,747). Considerando que Cacimbinhas, cantado em prosa e verso como o município mais autenticamente gaúcho, apresentasse uma diferença de 84 pontos e Cafundó chegasse aos 148 pontos, ambos sem presença significativa (ou até com presença nula) de “alemãos”, lembrei-me das minhas aulas de Técnica de Pesquisa em Ciências Humanas, e concluí que, no mínimo, não é inequívoco o estabelecimento de uma correlação entre população majoritária de “alemãos” e grande diferença do IDH para negros – e seu corolário. Karl Popper diria que essa constatação exige, de um cientista social responsável, no mínimo, a reformulação de suas hipóteses em sentido contrário, por mais plausíveis que pareçam.

 

– Vamos a alguns poucos exemplos da dissertação em que penso se manifestarem problemas decorrentes da opção de centrar o foco nos “alemãos”, ou de reiterar a condição de “município de alemães”. Comecemos pelas referências aos indígenas. O autor afirma que a única referência a uma multiplicidade étnica no hino do município está na expressão “sete povos”. A partir dali, submete o discurso da “antropologia” local a um crivo crítico, dizendo, entre outras coisas, que ela infantiliza os índios. Na leitura, tem-se a impressão de que o autor não se dá conta de que ele mesmo escreve, neste contexto, que “essa forma de conceber o indígena não é exclusividade de Cerro Largo. Ela apenas reflete uma realidade maior” (p. 47). Ou seja, antropólogos que estão com lugar garantido no pedestal dos mais “clássicos” “intérpretes do Brasil” disseram exatamente o mesmo que disse um “antropólogo”-colono, autodidata, num dos recantos mais remotos do RS, talvez derivado de leituras feitas num livro mandado buscar, com grande sacrifício, numa livraria distante. Em vez de expor esse “antropólogo”-colono à execração pública, não teria sido muito mais lógico e sensato submeter os grandes antropólogos “clássicos” a um crivo crítico, destacando que aquilo que disseram/escreveram teve tanta influência pelo Brasil afora, que até colonos “alemãos”, operosos, inovadores, empreendedores, progressistas, repetiram as suas bobagens, lá nos confins do Rio Grande do Sul? Essa inversão de “enfoque”, de “perspectiva” teria o mesmo resultado informativo e analítico sobre o problema, sem agredir determinadas “etnias” (ou seja lá que for). Exatamente o mesmo problema se repete, de forma reiterada, ao longo do trabalho, quando as referências são os negros. Na página 74, por exemplo, lê-se – depois de ter analisado os dados do IBGE sobre Cerro Largo, que mostram que os negros estão negativamente privilegiados: “Indo além, observa-se que, segundo os dados do IBGE, a situação desse contingente populacional [os negros de Cerro Largo] reproduz o caso brasileiro”. Mais uma vez, fica a pergunta: por que começar destacando a situação como uma maldade específica de um município “alemão”, quando nele apenas se repete aquilo que está presente em todo o Brasil? Não teria sido bem menos agressivo se o texto partisse do contexto nacional, para, depois, destacar que a situação é tão grave que até numa região de colonização alemã, numa sociedade de relativa democracia, de relativa simetria social (pequena propriedade – ao menos na origem) a desgraça dos negros não é diferente que em outros lugares do Brasil?

 

– A situação é equivalente quando o autor analisa o local de residência dos negros na cidade de Cerro Largo, destacando que se concentram na periferia, sendo excluídos e invisíveis – e aí, mais uma vez volta a citar bibliografia que afirma que o mesmo acontece em todo o Brasil (p. 80). Fiquei pensando: não estudei os dados numéricos, mas a presença percentual dos negros no Rio de Janeiro, certamente, é muito maior no Complexo do Alemão que nos bairros periféricos de Cerro Largo, e, se alguns de lá podem ser vistos na Barra da Tijuca, eles estão, ali, como domésticas, como lixeiros etc.; se eles, no RJ, “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”, não estão (mais) invisibilizados, não é porque lá vivessem brancos que são brasileiros “autênticos”, bons – e em Cerro Largo maldosos “alemãos” –, mas, sim, porque lá a situação de calamidade atingiu tal patamar que é totalmente impossível continuar a mantê-los invisíveis.

 

– Também é “denunciado” o fato de que o executivo, e até o legislativo, de Cerro Largo é, historicamente, dominado por “alemãos”. Causa certa surpresa uma referência dessas por parte de um cientista social. Qualquer pesquisador da área sabe quão resistentes são estruturas políticas (mesmo quando não leu Os donos do poder de Raymundo Faoro). Constitui o óbvio ululante que muitas das famílias “pioneiras” de Cerro Azul – hegemonicamente “alemãs” – assumiram o poder, e de lá não sairão tão logo (se me lembro bem, já houve eleição em que não apenas um, mas, sim, dois Nedel concorreram ao cargo de prefeito). O estranhamento do Leandro, em relação a esse aspecto, me lembrou a história de um colega de Porto Alegre que foi trabalhar numa universidade do interior do estado (cidade na qual não existe hegemonia “alemã”!). Muito logo, ele foi nomeado para a chefia de um setor, onde tentou fazer uma “revolução”, que desagradou a muita gente. Um colega, insatisfeito com as medidas adotadas, pediu uma audiência com esse colega, e a pergunta inicial da conversa foi por quantas gerações a família desse colega vindo de Porto Alegre estava estabelecida na cidade da universidade? Gostaria muito de saber que pensa o autor sobre o fato já citado de que, de 1824 até hoje, passados quase duzentos anos, nenhum único governador de sobrenome alemão administrou o Rio Grande do Sul, e olha que o percentual de descendentes de alemães no estado é superior aos 20% dos negros em Cerro Largo, além de contribuírem com uma parcela muito significativa do PIB gaúcho.

 

– Algo muito semelhante à política vale para a manutenção de traços culturais. Mesmo não sendo minha área de estudos, li, certa vez, que entre parte da população de Pernambuco se mantêm algumas práticas que derivam da presença de judeus estabelecidos no tempo da “invasão holandesa”. Claro, na preservação de hábitos há, no mínimo, duas situações diferentes: a preservação “artificial”, “premeditada”, e a conservação “natural”, “automática”. Alguns anos atrás, aconteceu uma tragédia na Rússia, quando terroristas sequestraram uma grande quantidade de crianças (se me lembro bem, dentro de um ginásio de esportes). Quando a televisão mostrou centenas de mulheres aglomeradas em frente ao prédio, chamei minhas filhas e lhes disse que aquela cena poderia ter sido filmada na frente da igreja lá em (Novo) Machado, nas décadas de 1950/70. Em dias de clima ameno para frio, praticamente todas as mulheres com a mesma idade de minha mãe iam à igreja cobertas por um lenço na cabeça. Essa era uma tradição que suas antepassadas tinham trazido da Ucrânia, onde constituía uma prática generalizada, transétnica, transconfessional (o nome do lenço, Tichel, é uma palavra iídiche), e não constituía nenhuma manifestação programática, não tinha qualquer conotação religiosa ou cultural – era simplesmente uma forma prática de proteger a cabeça e as orelhas. Talvez algumas mulheres de mais idade pertencentes ao meu povo aí em Ubiretama, Senador Salgado Filho continuem a usar esses lenços. Nesse sentido de práticas culturais, o autor se refere, por exemplo, às festas “alemãs”. Claro, a conotação dada a uma festa pode ser desastrada, mas festas “étnicas”, com muita frequência, constituem uma forma de ganhar dinheiro. E há, no texto, ao menos indícios de que isso também acontece em Cerro Largo. O autor destaca: “Das festas populares de caráter étnicas [sic] promovidas e fomentadas pelo poder público municipal reina soberana, em primeiro lugar, a Oktoberfest. Em um distante segundo lugar, tem-se as comemorações de 25 de julho, dia do imigrante” (p. 58 – o grifo é meu/REG). Aqui transparece muito claro que a festa de maior destaque não é uma festa de conotação “ideológica”, “programática” – esta seria a do 25 de julho, para louvar e enaltecer o brioso imigrante alemão, no entanto, ela fica num “distante segundo lugar” –, mas, sim, uma festa cuja finalidade básica é comer, beber, dançar, enfim, divertir-se (em entrevista recente, Tânia Terezinha da Silva, a prefeita negra de Dois Irmãos, declarou que gosta muito de Kerb, parecido com o Oktoberfest – para ver, clicar aqui). Claro, vai aparecer o sujeito vestido com bermuda de couro, pena preta no chapeuzinho verde – tudo para atrair o babaca do turista que acha aquilo exótico, e vem gastar seu dinheiro em Cerro Largo. Sim, há alternativas, a FENADI de Ijuí é um exemplo de festa mais “inclusiva”, há um lugar reservado para todos. Não sei como funciona. Conheço apenas o desastre que foi a tentativa da primeira administração popular e democrática de São Leopoldo, alguns anos atrás, que convocou entidades negras do município para organizar a “festa dos alemães”, o 25 de julho. O fracasso foi tamanho que a própria administração admitiu, de público, o erro absoluto dessa empreitada.

 

– Ao menos parcialmente ligada à questão das festas – afinal, festas “identitárias” –, está a questão da terminologia aplicada à população em debate, os “alemãos”. Essa gente costuma ser criticada por, muitas vezes, autoidentificar-se como “alemães”, “teuto-brasileiros” e outros termos semelhantes. Neste caso, pura e simplesmente não se sabe quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha. Quando seus antepassados foram trazidos da Alemanha, a massa dos “autóctones” disse que estavam trazendo alemães, e mesmo quando eles estavam estabelecidos muito tempo, seus filhos e netos – brasileiros – continuaram sendo chamados de “alemães”. Que poderiam eles fazer? Iriam “bater boca” com aqueles que assim os denominavam? Vivenciei uma miríade de casos em que grandes formadores de opinião pública, brasileiros "autênticos", quatrocentões, perguntaram "por que os alemães do Rio Grande do Sul se consideram alemães?" (na época em que se estudava latim no ginásio, se teria dito que essa pergunta constitui uma "contradictio in terminis"). Desconheço casos em que eles negaram sua condição de cidadãos brasileiros. Número significativo deles foi e morreu pelo Brasil na Guerra do Paraguai, idem na Segunda Guerra Mundial – sim, sei, tenho aqui na minha estante, e li, o livro do Denisson de Oliveira Os soldados brasileiros de Hitler, e no lado está o livro do mesmo Denisson intitulado Os soldados alemães de Vargas (em ambos os casos, se tratou de um pequeno percentual de jovens que tinham dupla cidadania). No mesmo sentido, na página 51, o autor apresenta uma citação de Miriam de Oliveira Santos que, no mínimo, sugere que os maldosos dos “alemãos” (e também os “gringos”) teriam inventado o termo pejorativo “[pelo] duro” para designar os “autóctones”. Fui ver o texto da Miriam, e constatei que ela não cita fonte. Deve ter “tocado de ouvido”, talvez ouviu de sua amiga e orientadora Giralda. Miriam é uma grande “gringóloga”, mas neste assunto não é autoridade que mereça confiança para servir de base para uma acusação dessa gravidade. Eu já investi bastante tempo para esclarecer a origem do termo “pelo duro”, e não cheguei a uma conclusão consistente. Em todo caso, há muito mais indícios de que o termo foi inventado na Campanha do que pelos “alemãos”: encontrei dicionários que o registram como típico da Fronteira, além disso, tive colegas filhos de estancieiros, militantes do Partido Comunista Brasileiro desde os cinco anos de idade, que falavam com absoluta naturalidade dos peões “pelo duro”. Claro, isso não significa que os “alemãos” não possam tê-lo usado de forma pejorativa contra os “autóctones”, mas a afirmação de que eles o inventaram com essa finalidade ainda precisa ser comprovada.

 

– Típico do clima dentro do qual a dissertação foi escrita é, também, a “desconstrução” do discurso publicado por um jornalista local por ocasião do falecimento de “Nego Tico” (p. 89-93). O jornalista é acusado de estar escondendo as condições reais de vida da massa dos negros locais, ao destacar as boas qualidades desse negro específico, sugerindo que era bom por possuir “alma branca” (esta última expressão não está no texto jornalístico, mas é referida por Leandro; na nota 41 da página 91, ele afirma que, "segundo fontes que nos parecem verossímeis, 'Preto de alma branca' era o título do artigo em questão, editorialmente modificado nas vésperas da publicação"; se essa afirmação puder ser provada, a situação muda de forma significativa; mas como está, há 50% de probabilidade de ser verdadeira, e outro tanto de ser falsa, inventada por um desafeto do jornalista).  Em relação a esse ponto, cabem duas lembranças: a) em primeiro lugar, o autor, mais uma vez destaca que não se trata de nada específico de Cerro Largo, pois “um discurso nunca é completamente inédito e original, na medida em que todo discurso já foi dito antes. O discurso analisado reproduz o que é comum nos meios racistas de nossa sociedade. Acreditamos nas boas intenções do articulista ao querer prestar sua homenagem a um homem humilde que faleceu em Cerro Largo, porém, seu discurso encontra-se impregnado do que DaMatta chamou de racismo à brasileira. Um racismo que, como bem explicou Schwarcz, foi adotado pelos nossos cientistas pela metade, excluindo a parte da segregação e do horror à miscigenação. Sobrou o que interessava às elites, ou seja, manter a hierarquia social” (p. 93). Mais uma vez, cabe perguntar se vale a pena “denunciar” um jornalista-colono “alemão”, lá do último recanto do RS, que ganha a vida num jornalzinho interiorano, quando há jornalistas de fama internacional escrevendo coisas idênticas em empresas de comunicação tão poderosas que conseguem derrubar presidentes da República? b) Acompanhei, com certa frequência, os “discursos” publicados a respeito de Mirelle Franco pela imprensa do RJ e de SP: em muitos casos, esse discurso é muito simétrico àquele sobre “Nego Tico” (a moça pobre da favela que com suas qualidades especiais consegue estudar e dar a volta por cima). O fato de nunca ter ouvido qualquer comentário contrário a essa abordagem eventualmente se explica por esse “discurso” ser produzido numa cidade, numa terra brasileiríssima, e assinado por um jornalista de sobrenome “autenticamente” brasileiro? Alguém garante que se o mesmo acontecesse na terra dos “alemãos”, Cerro Largo, numa matéria assinada por um jornalista de sobrenome alemão a reação não seria bem diferente?

 

– Ao insistir que em Cerro Largo absolutamente tudo conspira contra os negros, há motivos para suspeitar que até o campus local da universidade acaba caindo na vala comum: “Nem mesmo o campus de Cerro Largo da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS – pode ser considerado um espaço democrático do ponto de vista multiétnico” (p. 10). Para fundamentar essa afirmação, o autor informa que nos cursos de graduação (apenas) 15,43% dos estudantes se declaram pretos ou pardos. Como já informado, no município de Cerro Largo esse índice está próximo de 20%. Mas, a UFFS não “atende” exclusivamente a esse município, e, sim, a toda a região. Infelizmente, não tive tempo de verificar e calcular – por exemplo – qual é o percentual de negros no conjunto da população residente em Cerro Largo e em todos os municípios que o circundam. É plausível que nesse conjunto o percentual de negros seja inferior aos 15,43%.

 

– Coloco as questões até aqui elencadas para um debate público, porque a dissertação em pauta, com seu “enfoque”, se insere num determinado clima manifestado nos últimos anos em relação aos “alemãos” deste estado e deste país. Peço um pouco de paciência para mencionar alguns episódios (possuo um rol muito grande, mas vou poupar os leitores). a) Em 2008, ninguém menos que Jair Krischke – há décadas, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos – declarou a uma revista editada por uma universidade que os “alemãos” são os responsáveis pela violência skinhead, neste país (para ver, clicar aqui). b) Em 2009, a deputada Maria do Rosário Nunes criou uma Comissão Externa da Câmara dos Deputados (a CEXNEONA) para caçar “neonazistas” no Rio Grande do Sul; esse empreendimento, obviamente, consumiu quantidades muito significativas de dinheiro proveniente dos cofres públicos (abastecidos por nós cidadãos-contribuintes, incluídos os negros), mas a nobre comissão não encontrou nada contra os “alemãos”, motivo pelo qual nem relatório apresentou (para ver, clicar aqui); em 10/11/2016, sugeri à Procuradora-Chefe o MPF-RS que fossem tomadas medidas para recuperar esse dinheiro, até este momento (24/4/2018) não tenho informações a respeito, ainda que, entrementes, o próprio MPF-RS tenha declarado, formalmente, que não tem indícios, e muito menos provas, contra os “alemãos” (para ver, clicar aqui). c) Em 2010, o então Procurador da República em Lajeado desencadeou uma “desneonazificação” no vale do rio Taquari, que durou quase dois anos; nesse contexto, uma técnica pericial em Antropologia do próprio MPF-RS, doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, declarou, em um “laudo”, que o “conjunto dos concidadãos” de Teutônia estava “fragilizado”, porque um jornalista de Lajeado havia falado na existência de “três ou quatro” meninos que, vestidos de preto, se reuniriam, misteriosamente, numa oficina (entre parênteses: quando o delegado de polícia local pediu informações concretas ao jornalista sobre os meninos, ele não teve elementos) (para ver detalhes sobre essa “memorável jornada” contra os “alemãos” no vale do Taquari, clicar aqui). d) Alguns anos atrás, o colunista diário de um dos dois maiores jornais de Porto Alegre (doutor pela Universidade Paris V, que já foi professor-visitante na Sorbonne e coordenador de programa de pós-graduação em uma grande universidade gaúcha) contou que encontrou um ex-aluno que lhe disse que estava fazendo mestrado em Filosofia com o professor Ernildo Stein (cidadão-emérito de Cândido Godoy); o jornalista teve um surto, porque o estudante pronunciou o sobrenome como “Chtain”, quando – segundo o articulista – nós estamos no Brasil, e devemos pronunciar “Isteini” (o tom foi mais ou menos no sentido de sugerir a convocação de uma sessão do Tribunal de Nurembergue para quem fala “Chtain”); fico imaginando como se sentiria conhecida família porto-alegrense, se ele - mantendo-se coerente - a chamasse de Najelisteini); algum tempo depois do episódio em relação a Stein, assisti a um programa de rádio no qual esse mesmo colunista fazia uma entrevista com um cidadão brasileiro de nome João de la Croix; fiquei estupefato, quando – em vez de chamar esse cidadão de João de la “Cróixe/Croíxe/Croixé” (dentro da regra por ele estabelecida de que estamos no Brasil, e que os sobrenomes devem ser pronunciados de forma autenticamente brasileira) – o radialista dizia, de forma enfática, João “döö” la “Croooá”, e este último elemento era pronunciado lá no fundo da garganta, mais ou menos na altura do umbigo; esse mesmo jornalista relatou, numa de suas colunas, que esteve na UNISC (Santa Cruz do Sul), e lá o presentearam com o citado livro de Mateus Skolaude sobre os negros locais; mesmo que o livro só estivesse referido em um parágrafo da coluna daquele dia, o tom era no sentido convocar o leitor a imaginar a barbárie que é a vida dos negros “em terra de alemães” (sic); como conheço o colunista (foi meu aluno), mandei-lhe um e-mail perguntando se ele tinha, efetivamente, lido o livro, e alertando para a possibilidade de uma interpretação problemática daquilo que escrevera – mesmo que não tenha admitido, de forma expressa, que não lera o livro, foi incisivo em admitir que seu texto abria espaço para uma interpretação desabonadora em relação aos “alemãos” de Santa Cruz, mas até hoje, muitos anos depois, não escreveu nada a respeito. e) No contexto da ação do Procurador da República em Lajeado, publiquei, num passado mais recente, um capítulo de livro intitulado “Vale do Taquari, um antro de ‘neonazismo’?”; sintomático é que colegas com doutorado e pós-doutorado nas mais flamantes universidades do planeta, ao me apresentarem em eventos, palestras etc., e ao citarem minhas publicações mais recentes, invariavelmente “não enxergam” o ponto de interrogação colocado no final do título do texto, sugerindo que, em seu imaginário, constitui um fato óbvio ululante que o vale do Taquari efetivamente constitui um antro de “neonazismo”. f) Em 2011, apresentei, num congresso em Pelotas, um trabalho em que justamente analisei essa tendência absolutamente normal – mesmo fora do senso comum – de imaginar que os “alemãos” são os responsáveis pelo “neonazismo” (estava iniciando, na época, a escrita de meu livro O neonazismo no Rio Grande do Sul, publicado em 2012); na sessão de apresentação, estávamos sentados em um círculo, e à minha frente estava uma moça negra; mesmo antes do término de minha fala, ela estava levantando o braço para pedir a palavra, como estava previsto na dinâmica do evento; perguntou-me – em tom bastante incisivo, se não agressivo – se eu lia jornais; quando lhe disse que sim, ela disse que não era a impressão que tivera; perguntada sobre o porque dessa impressão, respondeu que estranhava que eu me aventurava a comparecer a um congresso científico para dizer que os “alemãos” não são os responsáveis pelo “neonazismo”, quando o movimento negro do Rio de Janeiro, de onde ela vinha, recebe relatórios quase cotidianos sobre violências físicas (!) contra negros praticadas por “alemães”, no Rio Grande do Sul; vi que algumas das pessoas presentes se entreolharam; eu, de minha parte, disse desconhecer informações desse tipo; a seguir, outras pessoas, em especial um professor argentino, fizeram comentários e perguntas, aos quais respondi com objetividade e racionalidade; durante a tarde, não frequentamos sessões na mesma sala, mas ao final do dia, quando eu saía do prédio do evento para ir ao meu hotel, encontrei a moça, e perguntei se ela estava indo ao hotel; me disse que sim, e caminhamos juntos até o hotel dela (que ficava antes do meu), até sentamos por algum tempo no hall, para continuar nossa conversa, na qual ela me contou que o movimento negro do RJ efetivamente recebe, de forma constante, informes no sentido por ela relatado; esse fato, impõe a conclusão de que existem gangues especializadas em difamar os “alemãos” do Rio Grande do Sul pelo Brasil afora; quando, em 2012, foi eleita Tânia Terezinha da Silva como prefeita da Baumschneis (para ver, clicar aqui), escrevi um e-mail para a moça negra do RJ que havia encontrado em Pelotas, remetendo o link para a matéria que publicara a respeito; fiquei emocionado, quando recebi uma resposta longa, agradecendo pela lembrança, rememorando nosso encontro em Pelotas, e classificando sua visita ao Rio Grande do Sul como muito útil, por ter-lhe possibilitado um conhecimento mais preciso sobre a realidade regional.

 

– Imagino que as gangues difamadoras possam estar continuando a atuar. Não se pode descartar a possibilidade de que a dissertação do Leandro já esteja circulando pelo Brasil como mais uma prova das maldades que os “alemãos” do “sul” cometem contra os negros. E essa preocupação ficou reforçada pela entrevista concedida e acessível no já citado vídeo. A impressão que tive é a de que o próprio Leandro esteve muito mais “centrado” e ponderado que seu entrevistador, que, possivelmente, tenha feito uma “leitura” perigosa do texto, pois ele, no mínimo, sugere que foram os “alemãos” que inventaram a expressão “pelo duro”, mas, sobretudo, sugere, de forma expressa, a feitura de novas pesquisas, não em Cacimbinhas ou em Cafundó, mas em Santa Rosa e Três de Maio, e isso, de forma explícita, porque lá também existem “alemãos”, exatamente igual a Cerro Largo. Faltou incluir o povo de (Novo) Machado, e, por consequência, o autor destas notas!

 

– Para terminar, apesar dessa ducha fria sobre meu entusiasmo em relação ao meu povo aí do noroeste do RS, confirmo a continuidade de minha campanha para transferir a Capital do RS para Santa Rosa (para ver, clicar aqui). Estou convicto de que só a radical laicização do Estado Gaúcho seria uma grande conquista, pois na praça central, a Praça da Bandeira, onde devem instalar-se os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, não há igreja (enquanto, mesmo assim, a mais ampla liberdade de consciência religiosa está garantida nas muitas dezenas de igrejas das mais diferentes confissões religiosas espalhadas pela cidade). Em Santa Rosa, com certeza, não existe hegemonia religiosa de parte de quem quer que seja - e isso não é pouco! [24/4/2018]

 

 

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Réplica de Leandro Alexandre da Silva:

 

“Li atentamente seu texto, e me sinto muito grato em ser alvo de sua crítica. Imediatamente, já concordo com alguns pontos, principalmente, quando o sr. fala dos enfoques e da não exposição de pessoas da comunidade, como o jornalista e o antropólogo. Agradeço muito as sugestões de referências que, infelizmente, me passaram batidas. De fato, sua argumentação me fez querer revisitar minha dissertação e a temática das relações étnico-raciais, não apenas no mundo alemão. Por outro lado, em alguns pontos, sua análise me pareceu por demais uma defesa apaixonada, não vou criticar pois aparentemente eu compartilho dessa mesma característica. Discordo da parte que tentas atribuir a mim a tachação de ‘alemães’ como gente ruim. Discordo, também, quando desqualifica as minhas fontes. Cerro Largo é um município que possui 20% de cidadãos negros em sua zona urbana. É fato que essas pessoas são invisíveis sociais, econômicos e políticos. Isso reflete o caso brasileiro? Penso que sim, deixei isso claro no texto. Entretanto, o fato dos membros da comunidade hegemônica se enxergarem como alemães em oposição aos brasileiros, e ainda por cima valorar essas definições não contribui para uma maior integração nem para a diminuição dessas desigualdades. Penso que o conflito maior é entre "alemão" e "brasileiro". Estou usando esses termos da exata maneira que costumeiramente é empregado pelos munícipes. O sr. já ouviu os termos, coisa de brasileiro, jardim de brasileiro, casa de brasileiro? Até nesse conflito o negro é marginal. Finalizando, sei das minhas limitações técnicas e metodológicas. É engrandecedor ser alvo da análise de um professor do seu gabarito, e fico muito feliz por meu texto ter despertado algum debate. Grande abraço, e estou à disposição. Fique à vontade para publicar essa resposta”. [3/5/2018]

 

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Tréplica de René Ernaini Gertz:

- A disposição ao diálogo, é um dos primeiros e mais preciosos ganhos desse embate intelectual. Muito obrigado.

- Sobre aquilo que Leandro chama de “defesa apaixonada”, algumas observações rápidas: a) sempre fui “defensor apaixonado” em meus textos; b) ninguém menos que Max Weber foi um “defensor apaixonado” – o “tipo-ideal” dele é uma “defesa apaixonada”, ao “exagerar”, para distingui-lo de outro “tipo-ideal”; c) quando iniciei meu site, em 2009, para denunciar as bestialogias que eram ditas sobre a responsabilidade dos “alemães” em relação àquilo que se chamou de atos e manifestações “neonazistas” no Rio Grande do Sul, desde o início deste século, se eu tivesse feito isso numa linguagem “mole”, do tipo: “meus caros leitores, não é bem assim, é um pouquinho diferente...”, ninguém teria mudado de ideia; estou convicto de que só em função da linguagem utilizada, hoje ao menos algumas pessoas pensam diferente; d) isso significa que aquilo que interessa é o conteúdo – e em relação a esse ponto desafio os leitores a apontarem um único caso em que eu, nas minhas “defesas apaixonadas”, ataquei ou arranhei coletividades de qualquer tipo (étnicas, raciais, religiosas, culturais...); eu “ataco” pessoas físicas, nominalmente citadas ou não, como Jair Krischke (cujo avô veio como pastor ao Brasil, motivo pelo qual minha reação às asneiras que tem dito em relação aos “alemães” não possuem, de minha parte, qualquer conotação étnica) ou “um colunista diário de um dos dois maiores jornais de Porto Alegre” (basta olhar os dois jornais para saber nome e sobrenome).

- Não sei onde, no meu texto, atribuí ao Leandro uma “tachação de ‘alemães’ como gente ruim”. Aquilo que eu apontei foi a possibilidade de que seu “enfoque” poderia levar a uma “leitura” negativa sobre os “alemães”, por parte de terceiros – e, até prova em contrário, não deu outra: o entrevistador (no vídeo indicado) lembra que seria bom fazer pesquisas em Santa Rosa, Três de Maio e outros municípios da região, porque lá também existem “alemães”, como em Cerro Largo. A solução para esse problema é dificilissíssima (o hiperlativo é proposital), pois não teria adiantado Leandro dizer, de forma expressamente enfática, que não estava falando mal dos “alemães” – a “leitura” de um texto foge do seu autor, e, infelizmente, não conheço solução. Uma possível tentativa de enfrentar esse problema são estudos comparados – se em todos os municípios sem presença de “alemães” a vida dos negros é paradisíaca, e só nos de “alemães” um inferno, não há nada a discutir (ainda que, mesmo assim, faltaria explicar a eleição de Tânia Terezinha da Silva, na Baumschneis, em 2012, a única prefeita negra no RS, e uma das apenas três em todo o Brasil).

- Quanto à suposta ou efetiva desqualificação de fontes, não sei em que Leandro está pensando. De forma expressa, critiquei a utilização de um texto de Miriam de Oliveira Santos para ao menos sugerir que os “alemães” poderiam ser inventores da expressão “pelo duro” (possivelmente em função de sua familiaridade restrita com o assunto, ela tenha reduzido a expressão à palavra “duro”). Reafirmo que, decididamente, Miriam não é autoridade para fundamentar uma suspeita dessa gravidade. Não sei se desqualifiquei outras fontes.

- Finalmente, está o conflito entre “brasileiros” x “alemães” (pois a frase, no texto de Leandro, sobre os 20% de negros em Cerro Largo não constitui qualquer pomo de discórdia, este é o problema, foi o tema da dissertação, merece ser enfrentado pelos pesquisadores – nada a opor, se há um problema é como abordar esse assunto). Claro, sei que o limite entre “brasileiros” e negros, muitas vezes, é tênue, mas o próprio Leandro deixa claro que os negros são até esquecidos em função da citada oposição. Em relação a esse ponto, também reitero minha afirmação de que ali é difícil saber quem “nasceu” primeiro: o ovo ou a galinha. Aqui, só uma perspectiva histórica de médio-longo prazo, talvez, poderia trazer alguma luz. Em uma colônia-irmã de Cerro Largo – Porto Novo, hoje Itapiranga, SC –, também criada pela União Popular para abrigar excedentes populacionais do RS, “brasileiros” aprontaram, e bota aprontaram nisso, durante a Segunda Guerra Mundial. Em pleno século XXI, o poder judiciário brasileiro – com palavra final do STF – condenou o Estado Brasileiro a indenizar uma família que teve um de seus membros supliciado, na época, por autoridades “brasileiras” (para ver, clicar aqui). Por isso, caberia verificar que pode ter acontecido em Cerro Largo. O conflito existe, e está claro, no ar. Penso que um dos pontos altos, mais recentes, nesse confronto (que, felizmente, se restringe a um número muito reduzido de pessoas) aconteceu em 2010, no episódio amplamente abordado neste site, sobre o “neonazismo” em Teutônia, no vale do Taquari. Resumindo: um jornalista de sobrenome italiano, mas que, com certeza, se considera um “brasileiro” legítimo, trabalhando há oito anos em Lajeado, referiu que três ou quatro meninos vestidos de preto estariam se reunindo, misteriosamente, numa oficina mecânica do município; interessantemente, nesse contexto, placas de trânsito, numa rodovia local, apareceram pichadas com suásticas; o delegado de polícia local e o delegado historicamente especializado em combate a “neonazismo”, Paulo César Jardim, vieram a público dizer que a população local não tinha nada a ver com isso; mesmo assim, o então procurador da República em Lajeado, declarando, publicamente, que imaginava que populações resultantes de “colonização germânica” apresentavam uma “tendência” ao “neonazismo”, resolveu tomar medidas; para isso encomendou um parecer a uma técnica pericial em Antropologia do próprio MPF-RS; não sou jurista, mas tenho certeza de que o parecer de um(a) perito(a) pode ser decisivo para que um juiz absolva ou condene uma pessoa a penas pesadas; pois, no parecer desta perita, pode-se ler que “o conjunto dos concidadãos” de Teutônia estava “fragilizado” pela suposta presença dos três ou quatro meninos (sobre cuja existência o jornalista não conseguiu arrolar qualquer indício, quando instado pelo delegado local de polícia); desafio os leitores a discordarem de minha suposição de que essa afirmação da perita sugere que todos os 25.000 habitantes de Teutônia estão, no mínimo, sob suspeita de serem, todos eles, “neonazistas”; não conheço a perita, nem o procurador (dele apenas vi imagens, dela nem isso), mas, pelos nomes, são “brasileiros”; repito aquilo que já escrevi em outro lugar: esse episódio não ocorreu durante o conflituoso período da Segunda Guerra Mundial, mas no início da segunda década do século XXI! Consigo entender muito bem como se sentiu o “brasileiro” paulista Leandro Alexandre da Silva ao vir a Cerro Largo, e ver-se emaranhado nesse confronto de décadas, sem ter nada a ver com ele!

- Leandro, são essas as minhas considerações sobre teu texto acima publicado. Podemos continuar o diálogo? [3/5/2018]