Como historiador profissional, sempre me esforcei, por um lado, em evidenciar a verdade histórica. Por outro lado, complementando esse esforço, localizado numa segunda interface da questão, tentei chamar a atenção para situações em que essa verdade, eventualmente, estivesse sofrendo arranhões – sempre gostei da tese de Reinhart Koselleck sobre o “direito de veto das fontes”, quando há dados e fatos que contradizem, de forma evidente, uma suposta verdade histórica.
Esta segunda função do historiador nem sempre é vista com simpatia, mas considero fundamental exercê-la, até para ajudar no avanço daquilo que eu gosto de chamar “ciência histórica”. Escrevi, certa vez, que simples palpites, versões subjetivas sobre acontecimentos do passado, em geral, são melhor redigidos por jornalistas e literatos que por historiadores profissionais. A nós cabe investir na tentativa de apresentar “aquilo que realmente aconteceu” (Ranke). Vou dar um exemplo de um ato concreto nessa direção. Certo dia, li um texto de Ricardo Figueiredo de Castro, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado “Extrema-direita, Pseudohistória e conspiracionismo: o caso do negacionismo do Holocausto”, publicado nos Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas (2014). Como tivesse encontrado na página 2 a afirmação de que “a polícia gaúcha afirma já ter cadastrado cerca de 500 neonazistas no Estado e registra um crescente aumento de suas ações de propaganda, recrutamento e violência”, considerei meu dever ético-profissional chamar a atenção do colega para o fato de que essa afirmação se baseava numa evidente fake new. Por isso, com data de 25/8/2018, enviei-lhe o seguinte e-mail:
Prezado Ricardo, imagino que nunca ouviste nem falar de mim, muito menos me conheces.
Estou escrevendo um artigo, e andei pesquisando, quando topei com teu texto no primeiro link abaixo. Na segunda página, citas uma fonte de O Globo sobre neonazistas no Rio Grande do Sul. Na época da publicação dessa notícia, eu escrevi uma matéria a respeito, no meu site – essa matéria está no segundo link abaixo.
Como vejo que no teu [currículo] Lattes consta que um dos teus campos de interesse e pesquisa são “direitas, com ênfase no negacionismo do Holocausto...”, imagino que possas voltar ao assunto. Como devo ser mais velho que tu (já estou aposentado, me graduei em 1974, portanto mais de 10 anos antes de ti), tomo a liberdade de chamar tua atenção para essa passagem, para um eventual diálogo. Em primeiro lugar, me pergunto se, como historiadores, às vezes, não seria conveniente lembra-se do velho Ranke, e não aceitar as fontes de forma acrítica, sobretudo as de imprensa?
Além disso, está a responsabilidade científica, acadêmica: sem dúvida, todo mundo acha importante condenar e combater o negacionismo e seu entorno – sobre isso não há dúvida. Mas, nesse afã, muitas vezes, os preconceitos que o acompanham entram pela porta dos fundos. Creio que nem tu vais discordar que essa notícia, no mínimo, repito: NO MÍNIMO, exagerada de O Globo, com certeza, contribuiu para aumentar o ódio étnico-racial contra os assim chamados “alemães” do Rio Grande do Sul, quando até obtive do MPF-RS uma declaração escrita de que eles NÂO possuem nem indícios, e muito menos provas, de que o neonazismo do estado tenha a ver com os “alemães” (ver o terceiro link abaixo). Sim, talvez a instigação a esse ódio étnico-racial até possa ser um mal menor que o negacionismo, mas é um mal, sim, com o qual nós historiadores não podemos pactuar!
Sim, eu sei, vais dizer que tu não afirmaste isso (que os “alemães” são os responsáveis pelo neonazismo “no sul”), mas, por favor, olha no meu olho – não vais negar que a massa dos teus leitores fez essa “leitura”.
Cito um exemplo sobre a dimensão do problema: certo dia, recebi telefonemas e e-mails informando que ninguém menos que Roberto Romano (!), da UNICAMP, havia declarado na Globo News que o Rio Grande do Sul está abarrotado de hordas de neonazistas. Quando o questionei a respeito, ele me disse que tinha lido isso num órgão de divulgação de um “Instituto Humanitas” de uma grande universidade autoclassificada de cristã do Rio Grande do Sul, com informações divulgadas por uma antropóloga destemperada que fez uma dissertação na UNICAMP, em 2007 (para ver de quem se trata, ver o quarto link abaixo).
Ricardo, não espero resposta, mas como historiador mais velho queria chamar tua atenção para esse fato – talvez possas meditar um pouco sobre isso.
Abraço.
René E. Gertz
http://www.renegertz.com/noticias/notas/99-cavaleiros
http://www.renegertz.com/noticias/notas/137-aleluia
http://www.renegertz.com/noticias/notas/138-ucrania
*
Como eu mesmo imaginei, não obtive resposta, mas, passados quase 11 meses, sinto que cumpri meu dever ético-profissional em alertar para efeitos nefastos que inverdades históricas podem produzir. Neste caso, me senti falando com autoridade, pois me dedico ao tema há quase dez anos, fato que me obriga a intervir, inclusive, na discussão pública. Mas agora me sinto diante de um assunto em relação ao qual não sou “autoridade”. Trata-se do seguinte: recentemente foi divulgada uma matéria jornalística que tem como principal fonte Vinicius Ramos, apresentado como professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e no currículo Lattes existe um Marcus Vinícius Ramos, doutorado em História pela Universidade de Brasília (que deve ser o próprio). A matéria em questão é a seguinte:
Homenagem do Exército brasileiro a oficial condecorado por Hitler é afronta a FEB, diz especialista
O Exército brasileiro homenageou nesta segunda-feira (1º/7/2019) o major alemão Eduard Ernest Thilo Otto Maximilian von Westernhagen (1923-1968), que durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) defendeu o Exército nazista.
A homenagem publicada juntamente com um texto no site oficial do Exército brasileiro diz que ele foi homenageado como aluno da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército do Brasil.
No texto, Otto é classificado como "um sobrevivente da 2ª Guerra Mundial e das prisões totalitárias soviéticas, cuja vida foi encurtada por um ato terrorista insano e covarde".
No dia 1º de julho de 1968, há exatos 51 anos, Otto foi assassinado a tiros no Rio de Janeiro pelo grupo radical de esquerda Colina (Comando de Libertação Nacional), enquanto participava de um intercâmbio promovido pelo Exército brasileiro.
No entanto, sua morte foi um engano. Otto foi confundido com o capitão boliviano Gary Prado, que em 1967 havia participado da captura do líder comunista Che Guevara (1928-1967).
Uma notícia da época publicada pelo jornal Folha de S. Paulo disse que "a vítima fora condecorada por Hitler quando da ocupação da França e recebera graves ferimentos quando do ataque do Exército soviético a Berlim. Terminada a guerra, permaneceu no Exército alemão, devido às suas qualidades de perito em artilharia".
Em entrevista à Sputnik Brasil, Vinicius Ramos, historiador e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diz que a homenagem do Exército Brasileiro a um oficial que atuou para as forças nazistas é uma afronta aos soldados brasileiros que lutaram na Segunda Guerra.
"Para mim, essa posição do Exército é uma afronta à principal força que foi enviada aqui da América do Sul, que foi a Força Expedicionária Brasileira (FEB), uma vez que os nossos pracinhas se deslocaram em direção à Europa para lutar contra o nazismo. A posição do Exército hoje é totalmente contrária ao esforço de guerra que foi feito por milhares de brasileiros que abandonaram suas famílias na luta contra a ditadura nazista", disse.
Cerca de 25 mil pracinhas brasileiros desembarcaram na Itália, o país terminou com um saldo de 443 militares mortos e cerca de 3.000 feridos.
"O major era um homem do alto oficialato, isso significa que, sem dúvida nenhuma, ele tinha alguma afinidade com a ideologia nazista, porque naquele momento não era possível dentro do Reich se pensar em promover um sujeito, ele foi homenageado pelo Hitler, não se pode pensar em uma homenagem feita pelo Führer sem que o sujeito tivesse afinidade com a ideologia", afirmou Ramos.
A Segunda Guerra Mundial deixou um saldo de 70 milhões de pessoas mortas, entre civis e militares.
Para Vinicius Ramos, a homenagem a Otto é uma sinalização do Exército para sua militância que apoia o regime militar que ocorreu no Brasil entre 1964 e 1985.
"É claramente uma tentativa do Exército em tentar rememorar alguma coisa para a sua militância, a militância mais à direita, porque não foi à toa que foi escolhido justamente o major que foi assassinado durante o período da ditadura por um movimento radical", destacou.
Vinicius Ramos também chama a atenção para o fato do Exército brasileiro também ter escolhido homenagear um oficial do Exército que perdeu a guerra, ao invés de homenagear combatentes responsáveis pela derrota do nazismo, como o Exército da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
"Mais de 80% do esforço de guerra para a vitória dos aliados foi feito pelo Exército Vermelho, foi feita pelo povo da União Soviética, o brilhantismo destacado desses soldados alemães ele me parece muito mais um brilhantismo que não se enquadra na realidade. O brilhantismo tem que ser destacado pelo Exército que venceu a guerra e livrou o mundo do nazismo", completou.
Fonte: https://br.sputniknews.com/brasil/2019070214152767-homenagem-do-exercito-brasileiro-a-oficial-condecorado-por-hitler-e-uma-afronta-a-feb-diz-expert/ (acessado em 7/7/2019).
O efeito dessa matéria pode ser aferido pelo conteúdo das manifestações de leitores na página de internet que a publicou. Tendo lido este texto durante a semana, deparei-me, na imprensa deste final de semana, com um texto de Elio Gaspari, em sua coluna publicada no caderno +Domingo, do Correio do Povo, de Porto Alegre, de 7/7/2019, p. 2:
A nova morte do major – A Escola e Comando e Estado-Maior do Exército deu a uma de suas salas o nome do major alemão Otto von Westernhagen, assassinado com dez tiros por terroristas do Colina, em julho de 1968, cinco meses antes da edição do Ato Institucional n. 5. Da homenagem resultou uma barulheira. Teria sido festejado um nazista condecorado por Hitler. Devagar com o andor, por três motivos. Primeiro, porque Westernhagen era um jovem oficial do exército. Combateu na França e foi ferido na tomada de Berlim, em 1945. Anos depois, foi reintegrado à tropa, como capitão. Em 1966, veio para o Brasil, onde cursava a ECEME. Um alemão que combateu na Segunda Guerra não pode ser automaticamente classificado como nazista. Em 1941, aos 14 anos, o jovem Joseph Ratzinger estava na Juventude Hitlerista, e dois anos depois, compulsoriamente, foi para a tropa. Em 2005, tornou-se o Papa Bento XVI. O caso Westernhagen tem um segundo aspecto. Ele foi morto por engano. Os terroristas campanaram e executaram um homem que supunham ser o capitão Gary Prado. Um ano antes, Prado participara da captura de Che Guevara. Os terroristas sabiam onde ele morava, mas só descobriram que não era o boliviano quando abriram sua pasta, e acharam documentos em alemão. Percebido o engano, calaram-se. O crime só foi desvendado anos depois pelo historiador Jacob Gorender. Westernhagen não era nazista nem boliviano, e morreu numa rua da Gávea sem ter nada a ver com o pato. Nada mais natural que homenageá-lo dando o seu nome a uma sala de aula na escola militar onde estudava. Num terceiro aspecto, a homenagem ao major repara um injusto esquecimento. Um dos integrantes do comando que o matou, o ex-sargento da FAB João Lucas Alves, é nome de rua em São Paulo e no Rio. (Ele foi torturado e morto no DOPS de Belo Horizonte. Na versão da ditadura, suicidou-se). Em 1968, mataram Westernhagen por engano. Meio século depois, sua memória merece respeito.
E agora? Neste assunto, decididamente, não sou autoridade. Que faço se me perguntarem sobre o assunto? Qual é a verdade histórica? Ou a verdade histórica é aquela que “dá” na cabeça de cada um? [8/7/2019]